A Clínica da Rede DIVAM: uma experiência de construção da prática decolonial

18 Junho 2020
A Clínica da Rede DIVAM: uma experiência de construção da prática decolonial

Beatriz Barbosa Fejgelman

Danielle Sales Oliveira

Resumo

Este trabalho visa apresentar a prática do coletivo Rede DIVAM (Debates Integrados pela Valorização e Atendimento das Mulheres) constituído, atualmente, por oito mulheres psicanalistas e feministas, residentes em São Paulo e que foi fundado em junho de 2017. Tal projeto pretende articular as ferramentas de escuta das psicanálises com o olhar crítico dos feminismos no acolhimento de mulheres, promovendo atendimentos em saúde mental, atividades formativas e ativismo. O coletivo partiu da proposta de atender mulheres vítimas de violência que não encontravam acesso a atendimento de saúde mental na rede pública e não tinham condições econômicas para manter um tratamento particular. No percurso do projeto, cerca de 400 mulheres foram atendidas em toda a cidade de São Paulo. A estrutura clínica criada para atender essas mulheres começa no dispositivo de acolhimento, segue com os atendimentos e as covisões clínicas e se sustenta com os grupos de estudo, tendo como base o tripé freudiano da psicanálise. Para embasamento da escuta clínica, os grupos de estudos são focados nos atravessamentos sociais e estruturais do patriarcado; o mais recente discutiu temas como feminismo decolonial e branquitude. Os estudos que, já passaram pelas autoras Angela Davis, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, Rita Segato, Neusa Santos Souza, Françoise Vergés e Isildinha Baptista Nogueira, fundamentaram a percepção social sobre os marcadores de diferença que afetam as mulheres, especificamente as mulheres negras e as violências estruturais a que estão submetidas. Isso se torna perceptível na clínica através da frequência com que os relatos de violência se repetem.

Rede DIVAM

A Rede DIVAM (Debates Integrados pela Valorização e Atendimento das Mulheres) é um coletivo de mulheres psicanalistas e feministas de São Paulo que existe há seis anos, desde junho de 2017. Atualmente, o coletivo é composto por oito mulheres com trajetórias diversas, dentre elas, psicanalistas, psicólogas e uma médica da família e comunidade, que compartilham do posicionamento político de uma prática de escuta ampliada às interseccionalidades (raça, classe, gênero e sexualidades) e do desejo de democratizar o acesso à saúde mental para mulheres e pessoas LBTQIA+.

A proposta do projeto é articular as ferramentas de escuta das psicanálises com o olhar crítico dos feminismos no acolhimento de mulheres, promovendo atendimentos em saúde mental, atividades formativas e ativismo. O coletivo é autofinanciado, não recebe verba governamental, nem subsídios vindos de outras instituições. No percurso do projeto, cerca de 400 mulheres foram atendidas em toda a cidade de São Paulo. Durante a pandemia, com a realização de grupos de terapia online, o projeto alcançou também mulheres de outros Estados do Brasil. Atualmente as vagas para atendimento são abertas conforme a disponibilidade das analistas.

O coletivo começou com a proposta de atender mulheres vítimas de violência. De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPA/PAHO), as Nações Unidas definem a violência contra as mulheres como "qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres, inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja em vida pública ou privada” (PAHO, 2023). A OPAS cita ainda a WHO: Violence against woman, trazendo dados de estatística sobre a violência contra a mulher, tais como: “Uma em cada três mulheres e meninas de 15 a 49 anos nas Américas sofreram violência física e/ou sexual por um parceiro ou violência sexual não-parceira; Uma em cada quatro mulheres e meninas com 15 anos ou mais nas Américas já sofreram violência física e/ou sexual por parte de um parceiro; Uma em cada oito mulheres e meninas com 15 anos ou mais nas Américas sofreram violência sexual por parte de um não parceiro” (PAHO, 2023).

A ideia do coletivo surgiu a partir de um caso real de uma mulher que havia se mudado para São Paulo após sofrer uma tentativa de feminicídio. Ainda com as cicatrizes no pescoço e sem residência fixa, não conseguiu vaga para atendimento psicológico no SUS nem em clínicas escolas de cursos de Psicologia e seguiu na fila de espera de alguns outros serviços. No processo de constituição do coletivo confirmou-se que esse não era um caso isolado, muitas mulheres que sofreram violência de gênero não encontravam acesso a atendimento de saúde mental na rede pública e não tinham condições econômicas para manter um tratamento particular.

Dada a urgência da demanda deste primeiro caso, inicialmente, os atendimentos foram pensados em modelo de plantão, mas com o tempo começaram a ser realizados por agendamentos. Ao perceber que muitas mulheres em situação de violência não se viam como vítimas de agressões diversas e deixavam de procurar o projeto, os atendimentos foram abertos para todas as mulheres sem fazer referência a casos de violência, compreendendo que essa mudança facilitaria o acesso dessas mulheres que só se compreenderam nessa situação após começar um processo de análise. Dado o fórum de segurança nacional do ano de 2023:

(...) os feminicídios cresceram 6,1% em 2022, resultando em 1.437 mulheres mortas simplesmente por serem mulheres. Os homicídios dolosos de mulheres também cresceram (1,2% em relação ao ano anterior), o que impossibilita falar apenas em melhora da notificação como causa explicativa para o aumento da violência letal. Além dos crimes contra a vida, as agressões em contexto de violência doméstica tiveram aumento de 2,9%, totalizando 245.713 casos; as ameaças cresceram 7,2%, resultando em 613.529 casos; e os acionamentos ao 190, número de emergência da Polícia Militar, chegaram a 899.485 ligações, o que significa uma média de 102 acionamentos por hora. Além disso, registros de assédio sexual cresceram 49,7% e totalizaram 6.114 casos em 2022 e importunação sexual teve crescimento de 37%, chegando ao patamar de 27.530 casos no último ano. Ou seja, estamos falando de um crescimento muito significativo e que perpassa todas as modalidades criminais, desde o assédio, até o estupro e os feminicídios. (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023, p.136).

Esses números alarmantes de violência praticada, na maioria dos casos, por pessoas conhecidas e da confiança das vítimas justificam a insegurança que elas sentem a respeito dos profissionais que as irão atender. Uma figura masculina pode deixar de ocupar o lugar de suposto saber tão importante para criação de vínculo na psicanálise e continuidade de um tratamento e passar a representar um “sujeito suposto suspeito” (Guerra, 2022). Muitas mulheres que buscam o coletivo não têm conhecimento do que é um processo analítico, apenas pedem socorro sem saber o que fazer em situações de violência e se faz possível falar de suas angústias por saberem que é um espaço só de mulheres. Assim torna-se crucial a associação de psicanálise e feminismo para criar acesso a escuta, se contrapondo a clínica tradicional ao compreender as demandas socioculturais e territoriais em que atuamos.

Compreende-se que uma problemática em associar feminismo e psicanálise é a possível projeção na similaridade de vivências, de que só outra mulher poderia escutar sua dor, criando o imaginário de que essa a compreenderia nesse lugar pessoal. Não é intenção da análise reforçar isso, pelo contrário, retomamos a dimensão singular da experiência e muitas vezes caminhamos para desindentificação com ideais do que deve ser uma mulher ou mesmo de como deve agir uma mulher feminista. Compreendemos que mesmo o ativismo de emancipação das mulheres, às vezes, traz regras absolutas de um modo de vida; o que acaba por atrapalhar seu caráter inicial.

Dito de outra forma, trata-se de tentar estabelecer um protocolo que garanta (na medida do possível) que discursos e atitudes preconceituosos e homo/bi/transfóbicos não se repitam no consultório, o que quer dizer assumir uma postura de atenção redobrada quanto a representações potencialmente opressoras presentes nas teorias que orientam as práticas clínicas e analíticas (Santos; Polverel, 2016).

A busca pelo coletivo, que se dá em função dessas identificações projetivas, levanta alguns questionamentos importantes que denunciam essas violências como estruturais de um sistema patriarcal e nos leva a repensar teóricos da psicanálise tradicional que muitas vezes reproduziram essa estrutura em seus textos. Aproximar feminismo e psicanálise é uma medida que se faz pertinente e que visa, a longo prazo, como Freud escreveu, o acesso universal à saúde mental. Caso um dia a equidade de gênero seja uma realidade concreta a associação com o feminismo talvez não se faça mais necessária. Até lá, o coletivo tem como alicerce os feminismos para estratégia política de luta pelos direitos das mulheres.

Faz-se importante diferenciar esses movimentos de uma ideologia da identidade que poderia sujeitar os indivíduos aos seus rótulos, ou a uma política identitária que teria um efeito reverso de reafirmar uma subjetividade colonial como destino sem abertura para uma efetiva mudança social. Como afirma Silvio Almeida no prefácio do livro Armadilha da identidade; A política identitária sem um horizonte de transformação do próprio ‘maquinário social’ que produz as identidades sociais gera uma camisa de força que faz com que o “sujeito” negro, mulher, LGBT possa ser, no máximo, uma versão melhorada e menos sofrida daquilo que o mundo historicamente lhe reserva (Almeida, 2019). A representatividade se faz extremamente necessária como estratégia de garantia de direitos para a população pobre, preta e periférica. Como nos adverte Silvio Almeida: “Em um sentido revolucionário, a afirmação da raça é feita apenas para que um dia seja possível superá-la.”

Assim, a Rede DIVAM desenvolveu uma estrutura clínica, para atender essas mulheres, que começa no dispositivo de acolhimento, segue com os atendimentos e as covisões clínicas e se sustenta com os grupos de estudo, tendo como base o tripé freudiano da psicanálise. O acolhimento é a porta de entrada e muitas mulheres que procuram o coletivo estão em busca de qualquer tipo de ajuda, sem saber o que é uma análise. Nesse momento, delineamos com cada mulher as suas queixas e demandas para encaminhar para uma das analistas da rede. Se for o caso, encaminha-se também para outros profissionais da saúde ou acompanhamentos como, por exemplo, o coletivo de juristas feministas, com o qual a Rede DIVAM possui uma parceria. A partir disso, é possível dar algum contorno à demanda mesmo que o foco seja o acolhimento; disponibilizando um lugar seguro de fala. Ao longo do projeto percebeu-se que a escuta realizada por uma mulher era parte importante desse estabelecimento de vínculo e confiança com as analistas e com a instituição. Apesar do foco do projeto ser atendimento de mulheres, cis ou trans, de qualquer sexualidade, abrimos vagas para homens trans e pessoas não-binárias ou queers, compreendendo que também traziam sofrimentos relacionados às opressões de gênero.

O dispositivo de covisão foi criado como espaço coletivo de discussão de casos. Recebe esse nome pois, a proposta é que não haja uma hierarquia: todas as integrantes escutam e relatam casos e suas percepções clínicas. Além de possibilitar essa troca de experiência profissional, é um importante ambiente de cuidado de questões pessoais, compreendendo que as analistas são mulheres cis e submetidas às violências, sendo imprescindível uma atenção cautelosa para os intercruzamentos dessas questões na transferência. Na covisão os casos trazidos são analisados para além da psicanálise, buscando identificar os atravessamentos intersecionais de raça, gênero, classe e sexualidade na vida das mulheres atendidas. Busca-se uma perspectiva de estudo engajada com o ativismo social para uma análise estrutural da sociedade e, de como esses marcadores de diferença impactam na vida dessas mulheres.

O grupo de estudos tensiona as pesquisas em feminismos e psicanálise. O coletivo não se prende a nenhuma vertente do feminismo, com o intuito de expandir o conhecimento dos feminismos de forma crítica e atenta à sociedade. Feminismos decoloniais foi o mais recente tema estudado pelo grupo, incluindo a obra da autora Françoise Vergès que, relata que o feminismo “ultrapassa a categoria ‘mulheres’, fundada sobre um determinismo biológico, e atribui novamente à noção de direitos das mulheres uma dimensão política radical: levar em conta os desafios impostos a uma humanidade ameaçada de desaparecer” (Vergès, 2020, p.28).

Vergès (2020, p.41) explica, ainda, que “Os feminismos decoloniais estudam o modo como o complexo racismo/sexismo/etnicismo impregna todas as relações de dominação, ainda que os regimes associados a esse fenômeno tenham desaparecido.”

A Rede DIVAM também não se limita a nenhuma linha teórica da psicanálise: cada analista busca acrescentar sua perspectiva clínica à discussão. O grupo de estudos tem como objetivo, a longo prazo, tornar-se uma formação clínico-política. Compreende-se o sofrimento como sociopolítico e, portanto, a formação feminista segue essencial na contínua construção da escuta clínica. Encontramos nas proposições do feminismo decolonial sustentação para essa compreensão e objetivo, uma vez que, para Vergès a luta dos movimentos feministas de política decolonial devem desestruturar o feminismo civilizatório que transforma “os direitos das mulheres em uma ideologia de assimilação e de integração à ordem neoliberal, reduz as aspirações revolucionárias das mulheres à demanda por divisão igualitária dos privilégios concedidos aos homens brancos em razão da supremacia racial branca" (Vergès, 2020, p.37).

Ainda sobre as lutas e movimentos feministas, Vergès (2020, p.35) define os “feminismos de política decolonial” como “movimento plural de feminismos resolutamente antirracista, anticapitalista e anti-imperialista, desenvolvido no sul global.” E acrescenta que:

“Não se trata nem de uma "nova onda", nem de uma "nova geração", para usar as fórmulas favoritas que mascaram as vias múltiplas dos movimentos das mulheres, mas de uma nova etapa no processo de decolonização, que, sabemos, é um longo processo histórico” (Vergès, 2020, p. 36).

Ao longo de anos de troca de casos clínicos foi possível perceber que o traço que se repetia nas histórias das pacientes seguia sendo a violência sofrida. Cada caso trazia uma singularidade de história e vivência, mas se compreende que essa repetição ocorre pela estrutura patriarcal em que vivemos. Assim, em 2020, criou-se o primeiro grupo terapêutico apostando no potencial transformador da troca entre as mulheres que buscam o coletivo.

Para além da clínica, outro alicerce do projeto é o ativismo político em pautas de gênero que dizem diretamente do direito à vida e subjetividade das mulheres; pautas como legalização do aborto, luta contra o feminicídio e violência contra a mulher, violência obstétrica, equidade de direitos e remuneração, entre tantas outras. Na questão do aborto, por exemplo, temos uma barreira clara do Estado legislando sobre o corpo das mulheres, dificultando os esforços analíticos em torná-las sujeitos de suas decisões, apontando limites práticos da clínica psicanalítica. Quando falamos de atendimento de mulheres e das opressões estruturais cotidianas e institucionais que as atravessam, dizemos de uma dimensão que é coletiva, mas que incide de maneira diferente em cada corpo e vivência, sendo assim necessário intervenções diferentes nos dois campos, o particular e o coletivo.

Nesse sentido, a análise possibilita a gestação de questionamentos no âmbito subjetivo, familiar e social, implicando a posição subjetiva na relação individual e coletiva com o ideal de branquitude brasileiro. Por fim, a problemática do racismo e da colonialidade abre outras questões para o horizonte da psicanálise em nosso tempo. Dentre elas, destacamos a possibilidade de se pensar os conceitos psicanalíticos a partir da chave de leitura da interculturalidade, visando descolonizar nossa concepção de estrutura familiar, de desejo e de inconsciente. Apontamos, ainda, para a necessidade de maiores estudos, no âmbito da psicanálise, acerca da branquitude e dos efeitos dos ideais coloniais – eurocêntricos e eugenistas – sob a perspectiva do branco brasileiro. Outrossim, questionamos, sob o prisma da prática clínica, se basta tratar o sintoma do sujeito e reinseri-lo em uma sociedade doente. Potencializam-se, nesse sentido, possíveis saídas alinhadas ao campo da coletividade” (Karpem; Ragnini, 2023, p. 329).

Apesar de um protagonismo da mulher preta nas relações privadas da família brasileira, tanto na função materna de seus filhos e dos filhos dos brancos, quanto como objeto de desejo ou base fundamental do trabalho doméstico, ela é apagada da história social do país. Lélia Gonzalez se vale dos conceitos lacanianos para trazer luz à “mãe preta” que passa sua língua, o pretuguês, ao povo brasileiro. Segundo a autora, o racismo é sintoma da neurose cultural brasileira, e como bons neuróticos construímos mecanismos de ocultamento desse sintoma como o famoso mito da democracia racial. A raça negra, dessa forma, seria um significante mestre que dá origem a cadeias de significantes, sendo capaz até de se assemelhar com o objeto a de Lacan, causa do desejo nessa estrutura central e ao mesmo tempo faltante.

As fronteiras entre trabalho, maternidade, desejo e abuso se misturam e se entrelaçam para a mulher negra de maneira velada em que nada ganha seu devido reconhecimento. Gonzalez revela o deslocamento dessas figuras no imaginário brasileiro e o apagamento da mãe preta, que vem sendo encoberto pela leitura edípica da família tradicional europeizada transposta para o sul do continente americano.

A antropóloga feminista Rita Segato propõe que a função materna é realizada pela babá negra e que a mãe acaba por exercer uma função paterna por separar o bebê dela:

Esta entrada paterna da mãe na cena familiar condiz também com o fato de que, ao negar o investimento materno por parte da babá substituindo a clave do afeto pela clave do contrato, a mãe legítima fica igualmente aprisionada numa lógica masculina e misógina, que retira da mãe-babá sua condição humana e a transforma em objeto de compra e venda. (Segato, 2006, p. 17)

Assim, a centralidade negra é continuamente apagada da história brasileira e recebe um lugar assujeitado, é tido como um outro que não pode falar de si, para a autora: “É indubitável que a dominação por meio do corpo tem relação com as invasões e com as colonizações. Assim, pode-se dizer que, como ocorre com a raça, a invasão e a colonização atribuem uma “natureza” e, depois, uma biologia ao posicionamento do dominado” (Segato, 2022, p. 15).

A autora Rita Segato questiona o sujeito universal em que: “A racialização e a genderização deixam de ser diferenças num ordenamento hierárquico e tornam-se restos, margens do sujeito. A lei vai gerar paliativos e remédios para os resíduos de todas essas anomalias do sujeito universal” (Segato, 2022, p. 16). Segato nos atenta ao fato de que, segundo esse discurso hegemônico, ter um modelo de sujeito universal significa que aqueles que fogem à norma precisam de tratamento para se enquadrar a esse padrão universal. Em movimento contrário, a autora propõe que gênero e raça são marcadores dentro de uma estrutura de diferenças que deveriam ser respeitadas como existências possíveis ao invés de existências meramente patológicas.

A psicanalista Isildinha Baptista Nogueira propõe que o racismo atua também em uma dimensão inconsciente de modo estrutural em nossa sociedade. O que afeta os sujeitos em camadas menos perceptíveis, porém não menos graves ou traumáticas. A autora nos revela que a realidade sociocultural de racismo deixa marcas inscritas na psique e afetam os sujeitos em níveis inconscientes, ela localiza na teoria psicanalítica esses efeitos do social:

O ponto de vista que pretendo tematizar diz respeito justamente a esse aspecto inconsciente em que o racismo se inscreve, tanto para os brancos quanto para os negros. E é esse fenômeno que faz com que os conteúdos inconscientes ligados ao racismo persistam, independentemente da realidade social e política. Ou seja, mesmo que, no campo social, político e jurídico o racismo possa estar excluído, tal exclusão opera no plano da consciência dos indivíduos que não pode, por si só, determinar o campo do inconsciente. (Nogueira, 2021, p.71).

Para completar a discussão trago Cida Bento que elabora o conceito de pacto da branquitude e reforça que o que é proposto como universal é na verdade um mecanismo para reafirmar os privilégios dos brancos. A autora demonstra os mecanismos de preservação da norma: “Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o ‘diferente’ ameaçasse o ‘normal’, o ‘universal” (Bento, 2022, p.18). É preciso rever o universal:

(...) trata-se de compreender a perspectiva que emerge quando deslocamos o olhar que está sobre os “outros” racializados, os considerados “grupos étnicos” ou os “movimentos identitários” para o centro, onde foi colocado o branco, o “universal”, e a partir de onde se constituiu a noção de “raça”. (Bento, 2022, p.15)

Nesse contexto, as reivindicações de raça e gênero no Brasil passam a ser uma estratégia política de grande importância para os movimentos sociais de defesa de direitos das minorias políticas, não como resolução do conflito, mas como primeiro passo para deflagrar o problema. É preciso estranhar o fato de que nos norteamos com os padrões branco, heterossexual e europeu para fazer uma leitura que abrange qualquer caso se prometendo universal. Ainda, questionar o trabalho que se faz para manter essas estruturas de poder vigente, encobertos por identidades que se propõem universais para, assim, compreender que a luta política por reconhecimento não busca integrar as diferenças apenas adicionando novas identidades ao sistema normativo hegemônico, mas sim a subversão deste sistema enquanto opção estruturante.

Na Rede DIVAM buscamos, na prática clínica das covisões, inserir o olhar interseccional de gênero, raça e classe para ampliar a escuta de cada caso trabalhado com o coletivo. Com a construção teórica dessas autoras, embasamos nossa percepção clínica de que a repetição das demandas de situação de violência aponta uma questão estrutural para além da singularidade a ser trabalhada em cada caso. Trabalhamos para que a escuta clínica se atente aos marcadores de diferença que afetam as mulheres, especificamente as mulheres negras e as violências estruturais a que estão submetidas.

Referências Bibliográficas

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GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro-Latino-Americano. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020.

GUERRA, Andrea. Sujeito suposto suspeito: a transferência psicanalítica no sul global. São Paulo: N-1 Edições. 2022.

KARPEM, Carla Cristina; RAGNINI, Elaine Cristina Schmitt . Psicanálise, Racismo E Pensamento Decolonial. Humanidades & Inovação , v. 10, n. 4, p. 316-331, 2023. Disponível em:

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KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

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NOGUEIRA, I. B. A cor do inconsciente - significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021.

PAHO - Pan American Health Organization. Violência contra as mulheres, 2023. Disponível em:

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SANTOS, Beatriz; POLVEREL, Elsa (2016) Procura-se psicanalista segurx. Uma conversa sobre normatividade e escuta analítica. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -1, p. 3, 2016. Disponível em:

https://revistalacuna.com/2016/05/22/normatividade-e-escuta-analitica/

SEGATO, Rita. Refundar o feminismo para refundar a política in Cenas de um pensamento incômodo: Gênero, cárcere e cultura uma visada decolonial. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2022.

SEGATO, Rita. O Édipo brasileiro: dupla negação de gênero e raça. Issue 400 in série Antropologia, Brasília, 2006.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. Tradução: Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu editora, 2020.

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