Clínica psicanalítica hoje: potencial de transformação social ou reprodução neoliberal?

1 Janeiro 2023
Clínica psicanalítica hoje: potencial de transformação social ou reprodução neoliberal?

Beatriz Barbosa Fejgelman

Orientador: Prof. Me. Dario Cintra de Negreiros Ribeiro

Resumo

O presente trabalho busca analisar as condições de acesso à clínica psicanalítica. Os movimentos sociais apontam que muitas pessoas até hoje não acessam a clínica clássica, seja por um recorte financeiro, seja por não se sentirem escutadas em suas diferenças. Apresento a trajetória da clínica social desde Freud com as clínicas públicas na Europa, até os coletivos de psicanálise que começaram a se expandir com maior expressividade no Brasil na última década. Neste período também cresceram as clínicas virtuais de atendimento psicológico que atendem milhões de pessoas atualmente. Para pensar esses fenômenos distintos da clínica atual apresento duas instituições que se assemelham pelo nome; o coletivo Rede DIVAM de psicanalistas feministas e a plataforma de atendimento on-line DIVAM LTDA. Realizo uma análise comparativa buscando compreender os mecanismos neoliberais que operam nas clínicas virtuais e o potencial de transformação social dos coletivos de psicanálise.

Introdução

Esse trabalho tem sua origem das inquietações provenientes da prática clínica e ativista de 6 anos do coletivo Rede DIVAM. O coletivo é formado por psicanalistas e feministas que buscam acessibilizar a clínica ao mesmo tempo que promovem ativismo político. Com o andamento do projeto duas questões principais surgiram a) a problemática da identificação das mulheres com o projeto feminista em contraposição ao singular na clínica e b) a procura por um atendimento com valor social e o que isso significa no imaginário popular e na transferência com a instituição.

O termo clínica social circulava e nomeava a prática sem que fosse elaborado pelas fundadoras nem divulgado dessa maneira, o que instigou a busca do seu significado. A princípio a definição chegou pela negativa, clínica social é aquela que visa atender mais pessoas do que apenas as de classe média ou alta em consultórios particulares da clínica clássica. Outra definição, dessa forma, se fez necessária, a de clínica clássica - nomeada clássica e não apenas clínica para podermos aqui ressaltar diferenças dentro das duas práticas. Compreendemos que a clínica clássica se sustenta em premissas teóricas universais d’A psicanálise, mas que pragmaticamente se apresenta como uma clínica que escuta alguns poucos e não tem uma preocupação específica com as problemáticas sociais de sua época.

Na história da psicanálise temos desde Freud exemplos de clínicas públicas na Europa e, recentemente, no Brasil, acompanhamos o surgimento de diversos coletivos de psicanálise. Eles propõem novos modelos de prática articulando conceitos da psicanálise com temas de interseccionalidade de gênero, raça e classe. Os coletivos ganharam maior expressividade em número nos últimos 10 anos e são alinhados às pautas dos movimentos sociais contemporâneos que trazem furos importantes d’A psicanálise - apontam que pessoas que fogem da cisheteronormatividade muitas vezes não se sentem escutadas por seus analistas. Esses coletivos foram tomados como identitários e acusados de fazer uma clínica para poucos. Porém, ao mesmo tempo, ao darem visibilidade a pessoas normalmente excluídas do sistema, apontaram a não universalidade da clínica clássica.

Embora cada coletivo tenha se aprofundado em demandas sociais específicas, seja de território, seja um recorte de gênero ou raça, todos defendam o acesso econômico à psicanálise, seja com atendimentos gratuitos ou por valor social. Esse último termo é muito utilizado por pessoas que buscam por análise e tem como primeira barreira a financeira. Alguns psicólogos nomeiam de vagas de atendimento social alguns horários de sua agenda reservados para atendimentos com um valor inferior ao estipulado pelo conselho de registro de classe.

Na psicanálise essa questão se complexifica ao pensarmos que os valores de atendimento variam de acordo com cada analisante e sua possibilidade de investimento, levantando a questão se haveria uma psicanálise social ou se a questão social é inerente à análise. O manejo do dinheiro na clínica é diverso, mas vale pensarmos os efeitos na transferência ao separar vagas de atendimento social nos consultórios particulares de classe média, assim como analisar as transferências institucionais com os coletivos de psicanálise.

Uma vez exposto o conceito e as práticas de clínicas sociais, sigo o trabalho apresentando uma análise mais detalhada de dois projetos profundamente diferentes em suas origens e intensões. Começo pela Rede DIVAM, coletivo de psicanalistas feministas fundado em abril de 2017, em São Paulo, trazendo seus impasses para tentar compreender se há possibilidade de transformação social – esse questionamento permeia o texto e orienta a investigação como um todo. O segundo projeto examinado, plataforma de atendimento psicológico Divam LTDA, expande esse questionamento acrescentando: há possibilidade de transformação social ou caímos em uma armadilha neoliberal que se apropria de qualquer nova demanda social para ofertar um novo produto? Quando a plataforma foi lançada em 2022 as dúvidas sobre a clínica social praticada pelo coletivo ganharam nova dimensão, sendo impossível não considerar com mais seriedade a intervenção neoliberal nas práticas coletivas e no modo de vida generalizado. Além da semelhança do nome, as cores e logo da plataforma se parecem ao da Rede gerando confusão nas pessoas que buscam a clínica social. O objetivo da pesquisa é fazer uma análise comparativa das duas instituições com o intuito de levantar alguns pontos de sua radical diferença.

A fim de completar essa reflexão principal trago também alguns exemplos de plataformas de atendimento on-line que começaram a ganhar maior expressividade em número de atendimentos na última década para compreender seu tamanho sucesso, sua coesão com sistema neoliberal e quais as implicações clínicas disso. Os pacotes de terapia facilitam o acesso à análise, não apenas por seu baixo custo, mas também pela ausência de deslocamento urbano nos atendimentos online, caracterizando uma clínica virtual. Os sites se propõem a conectar psicólogos a clientes, ficando com uma porcentagem do valor ganho por sessão ou, a depender do site, cobrando uma taxa fixa mensal para manter o registro na plataforma. Esse novo modelo não gera nenhum tipo de vínculo empregatício com os profissionais da área da saúde, nem qualquer compromisso com o atendimento oferecido ao cliente justamente por se colocar como mediador de negócios e não uma instituição de saúde – um fenômeno que está em acordo com tendências neoliberais de trabalho, consumo e tecnologia.

Avançando, retomo a questão inicial do que define a clínica social para, na verdade, chegar a novos questionamentos: seria a clínica social uma prática reservada à psicologia social? Ou existe uma psicanálise social? E seria essa clínica psicanalítica parte da esfera social? Se a teoria psicanalítica se propõe universal, por que sua prática só alcança parte específica da população? Se o acesso financeiro à psicanálise em si não caracteriza uma clínica social, seria na articulação política com o ativismo social de minorias e populações historicamente excluídas que se constrói um traço da psicanálise no social?

Dessa forma, atravessado por essas questões, este trabalho apresenta três modelos de clínica psicanalítica: a clínica clássica, a clínica social e a clínica virtual. No primeiro capítulo, apresento o conceito de psicanálise social e a diferenciação de uma clínica clássica e uma clínica social, analisando as questões trazidas pelos movimentos sociais de que a psicanálise não atinge o que se propõe, pautando-se em um suposto alcance universal que, na realidade, se restringe a um perfil social e econômico específico. Para trazer um recorte territorial para essa análise exponho uma leitura de Lélia Gonzalez, Rita Segato e Cida Bento das peculiaridades brasileiras para pensar a clínica. Para finalizar o capítulo, introduzo o conceito de neoliberalismo para pensar como um modelo de relação pauta a experiência social atual, inclusive no que diz respeito ao sofrimento e suas possíveis clínicas.

No segundo capítulo apresento as clínicas públicas de Freud no período entreguerras, importante exemplo de clínica social criado pelos próprios psicanalistas, que compreendiam a psicanálise em sua função de transformação social. Depois apresento algumas clínicas de instituições de formação em psicanálise brasileiras por serem os nossos primeiros exemplos de clínica social. Por fim os coletivos de psicanálise criados nos últimos dez anos que, diferente das clínicas escolas, retomam a importância da psicanálise no social para além de uma etapa formativa.

No terceiro capítulo faço um estudo de caso, apresento de maneira mais detalhada as duas instituições principais que compõem o escopo do trabalho comparativo, o coletivo Rede DIVAM de psicanalistas feministas e a plataforma de atendimento on-line DIVAM LTDA, levantando principalmente a problemática do acesso à psicanálise. Aponto os mecanismos neoliberais que operam nas clínicas virtuais e as dificuldades de estruturar um projeto de atendimento gratuito ou de baixo custo sem financiamento ou vinculação a uma instituição de ensino. Encerro esse capítulo questionando a possibilidade de transformação social por intermédio da clínica dos coletivos de psicanálise em um sistema neoliberal, tentando dar uma resposta, provisória, a pergunta central que deu origem à iniciativa do estudo de caso e conduziu as discussões levantadas pela própria prática clínica em coletivo.

A pesquisa foi realizada a partir da teoria Lacaniana. Utilizo dois textos de Freud; Caminhos da Terapia Analítica de 1919 e Psicologia das massas e análise do eu de 1921, período que elaborou bastante sobre a psicanálise no social. Utilizo autores franceses como referência para as questões do social em tempo neoliberal como Dardot, Laval e Donzelot. Realizo também um levantamento de artigos atuais que relatam experiências de clínicas públicas no Brasil.

Psicanálise é política, como?

O debate sobre clínica social na psicanálise aparece desde a sua criação, sempre articulando o sujeito como dependente do social. Retomo o clássico texto “Psicologia das massas e análise do eu” (1921) em que Freud apresenta sua tese de que toda clínica é social, mesmo em seu formato individual o conteúdo a ser trabalhado é sempre relativo a um outro:

Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. (Freud, 1921, p. 1)

Assim, é inevitável pensar o indivíduo sem levar em conta seu território, cultura e linguagem. Ele está sempre referido a um outro; ou, como coloca Lacan anos depois, ao Outro. Pelo menos em sua teoria, a psicanálise freudiana compreende a historicidade de cada sofrimento individual imbricado ao seu contexto social: “Podemos afirmar que não há patologia descrita por Freud que não pressuponha a ideia de uma organização social e política que a produza” (Silva Junior, 2021, p.259).

Essa definição é pertinente para compreensão da psicanálise, mas não auxilia na diferenciação das práticas clínicas. Assim, sigo para uma análise do que seria uma psicanálise política a partir da tese de Marcelo Checchia, “Sobre a política na obra e na clínica de Jacques Lacan”, em que ele analisa o uso da palavra política na obra de Freud e Lacan. Em Freud, Checchia faz um recorte da dimensão psíquica da política e da dimensão política do psiquismo. Ele ressalta uma leitura da sociedade que teria como base o “sentimento de culpa engendrado pelo supereu” (Checchia, 2012, p.47) e a interiorização do poder do pai como formação do supereu e como exemplo da subjetividade como implantação da dominação externa.

Outro modo de pensar a política na clínica trazido pelo autor é por sua dimensão técnica no manejo da psicanálise. O que vale tanto para Freud quanto para Lacan que, mesmo sem citar tão claramente esse termo, trabalha a política da direção da cura. E mais diretamente no seminário 14, A lógica do fantasma, ele afirma que o inconsciente é política. Mesmo com essa frase contundente, pouco se explica sobre seu significado em ordem prática: o termo político é usado em outra dimensão de significado e não se traduz em uma clínica necessariamente política ou de transformação social.

Dado que o individual é influenciado pelo social que o precede, podemos compreender os sintomas como sociais. Ao trabalhar essa dimensão mais ampla de política na psicanálise, podemos pensar o que se repete na história da cultura como o próprio sintoma das patologias do social. Nesse sentido, vemos uma grande aposta dos movimentos sociais e dos intelectuais contemporâneos em apontar as interseccionalidades de gênero, raça e classe como ponto de partida para uma releitura necessária da psicanálise – que se faz pertinente também na intervenção prática dos novos modelos de clínica.

Teoria à brasileira e o pretuguês

Antes de introduzir as experiências práticas de clínicas sociais no Brasil recorro a um importante texto de Lélia Gonzalez, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, para pensar as especificidades da cultura que formam o social no caso brasileiro, começando pela questão racial. A autora descreve a mulher preta passista de escola de samba que trabalha como doméstica para apontar o paradigma da dupla jornada em um só corpo; ora em um trabalho invisibilizado e de base do cuidado da casa e dos filhos das pessoas de classe alta, ora capa das revistas em trajes de carnaval. Esse é um papel ambíguo que tem um passado colonial desde as mucamas, escravas que realizavam trabalho doméstico e eram acompanhantes de qualquer necessidade de seus senhores, inclusive sexual, além de amas-de-leite.

Apesar de um protagonismo da mulher preta nas relações privadas da família brasileira, tanto na função materna de seus filhos e dos filhos dos brancos, quanto como objeto de desejo ou base fundamental do trabalho doméstico, ela é apagada da história social do país. Lélia se vale dos conceitos lacanianos para trazer luz à “mãe preta” que passa sua língua, o pretuguês, ao povo brasileiro. Segundo a autora, o racismo é sintoma da neurose cultural brasileira, e como bons neuróticos construímos mecanismos de ocultamento desse sintoma como o famoso mito da democracia racial. A raça negra, dessa forma, seria um significante mestre que dá origem a cadeias de significantes, sendo capaz até de se assemelhar com o objeto a de Lacan, causa do desejo nessa estrutura, central e ao mesmo tempo faltante.

As fronteiras entre trabalho, maternidade, desejo e abuso se misturam e se entrelaçam para a mulher negra de maneira velada em que nada ganha seu devido reconhecimento. Gonzalez revela o deslocamento dessas figuras no imaginário brasileiro e o apagamento da mãe preta, que vem sendo encoberto pela leitura edípica da família tradicional europeizada transposta para o sul do continente americano. A antropóloga feminista Rita Segato propõe que a função materna é realizada pela babá negra e que a mãe acaba por exercer uma função paterna por separar o bebê dela:

Esta entrada paterna da mãe na cena familiar condiz também com o fato de que, ao negar o investimento materno por parte da babá substituindo a clave do afeto pela clave do contrato, a mãe legítima fica igualmente aprisionada numa lógica masculina e misógina, que retira da mãe-babá sua condição humana e a transforma em objeto de compra e venda. (Segato, 2006, p. 17)

Assim, a centralidade negra é continuamente apagada da história brasileira e recebe um lugar assujeitado, é tido como um outro que não pode falar de si, para a autora: “É indubitável que a dominação por meio do corpo tem relação com as invasões e com as colonizações. Assim, pode- se dizer que, como ocorre com a raça, a invasão e a colonização atribuem uma “natureza” e, depois, uma biologia ao posicionamento do dominado” (Segato, 2022, p. 15).

Para completar a discussão trago Cida Bento que elabora o conceito de pacto da branquitude e reforça que o que é proposto como universal é na verdade um mecanismo para reafirmar os privilégios dos brancos. A autora demonstra os mecanismos de preservação da norma:

“Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o ‘diferente’ ameaçasse o ‘normal’, o ‘universal” (Bento, 2022, p.18).

É preciso rever o universal:

(...) trata-se de compreender a perspectiva que emerge quando deslocamos o olhar que está sobre os “outros” racializados, os considerados “grupos étnicos” ou os “movimentos identitários” para o centro, onde foi colocado o branco, o “universal”, e a partir de onde se constituiu a noção de “raça”. (Bento, 2022, p.15)

Nesse contexto, as reivindicações de raça e gênero no Brasil passam a ser uma estratégia política de grande importância para os movimentos sociais de defesa de direitos das minorias políticas, não como resolução do conflito, mas como primeiro passo para deflagrar o problema. É preciso estranhar o fato de que nos norteamos com os padrões branco, heterossexual e europeu para fazer uma leitura que abrange qualquer caso se prometendo universal. Ainda, questionar o trabalho que se faz para manter essas estruturas de poder vigente, encobertos por identidades que se propõem universais para, assim, compreender que a luta política por reconhecimento não busca integrar as diferenças apenas adicionando novas identidades ao sistema normativo hegemônico, mas sim a subversão deste sistema enquanto opção estruturante.

O universalismo n’A clínica clássica – uma voltinha pelo mundo

Os debates entre a psicanálise e as teorias de gênero são constantes e muitas vezes frutíferos. Freud, em diálogo com Melanie Klein, Karen Horney e outras autoras contemporâneas a ele, revisava furos em sua teoria e avançava em conceitos importantes como o Complexo de Édipo e inveja do pênis. Lacan, em discussão com as feministas de sua época, profere uma de suas frases mais conhecidas, “A mulher não existe”, que apesar de polêmica o leva a novos caminhos de conceituação. Atualmente o movimento queer tem batido na porta da psicanálise com pertinência para dizer sobre uma falta de escuta de corpos divergentes da norma, entretanto, dessa vez, encontra a porta fechada para diálogo.

Atualmente vemos debates importantes que combinam gênero e psicanálise onde autores como Judit Butler e Paul Preciado trazem questionamento ao pensamento clínico e a prática da psicanálise. Butler demonstra essa falta de escuta psicanalítica ao falar de corpos que são tidos como abjetos e ininteligíveis para a sociedade em sua obra Corpos Que Importam. Preciado, por sua vez, coloca em xeque limitações do corpo biológico nessa nova era da tecnologia e parte do relato de vivências queers e transgênero para questionar o sistema patriarcal e a heteronormatividade em seu Manifesto Contra Sexual. Esses trabalhos mostram que sujeito, corpo, patriarcado e sexualidade são temas centrais para uma psicanálise que precisa se renovar se quiser acompanhar sua época.

O que podemos observar, todavia, é que grandes autores do campo da psicanálise se mostram avessos a essas críticas. Há um retorno para A psicanálise com a intenção de afirmar que essas manifestações políticas de reivindicação de sexualidades e gênero não normativas deveriam ser tratadas como patologias. Jacques Alain Miller, genro de Lacan, fundador da Escola da Causa Freudiana e da Associação Mundial de Psicanálise, escreve o texto Dócil ao Trans no qual zomba e estigmatiza as demandas dos movimentos sociais e acusa o autor Paul Preciado de “coqueluche das mídias woke”, endereçando uma resposta mais individual do que crítica. Miller continua: “contudo, não havia no tempo de Freud grupos militantes nem lobbies dedicados à emancipação das histéricas, a seu empowerment” (Miller, 2021), explicitando seu posicionamento conservador. No Brasil, Marco Antônio Coutinho Jorge faz coro a esses ideais no seu texto A epidemia transexual, ele questiona o diagnóstico de psicose na transexualidade para propor uma histeria, porém ainda defendendo que é papel da psicanálise realizar um diagnóstico social como esse:

Novas formas de histeria se apresentam hoje, mas talvez a mais frequente delas seja a transexualidade que invadiu a clínica médica, afirmando a disparidade entre anatomia e subjetividade, forma última de interrogar o saber sobre o sexo: o que é o homem, o que é a mulher? Se no início se concebeu a transexualidade como uma forma sintomática da psicose, hoje fica claro que nem toda transexualidade é psicótica. Ao contrário, hoje a histeria parece ter se apropriado da transexualidade para postular sua perene pergunta sobre a verdade do sexo. (Jorge; Travassos, 2017, p. 12)

Esses autores defendem a neutralidade da psicanálise e compreendem que as demandas trazidas por movimentos trans não devem ser escutadas como críticas sociais, mas como uma doença epidêmica que a psicanálise deve tratar. Retomo a autora Rita Segato para advertir as problemáticas de diagnosticar aqueles grupos que fogem da norma branca e cisgênero: “A racialização e a genderização deixam de ser diferenças num ordenamento hierárquico e tornam-se restos, margens do sujeito. A lei vai gerar paliativos e remédios para os resíduos de todas essas anomalias do sujeito universal” (Segato, 2022, p. 16). Segato nos atenta ao fato de que, segundo esse discurso hegemônico, ter um modelo de sujeito universal significa que aqueles que fogem a norma precisariam de tratamento para se enquadrar a esse padrão universal. Em movimento contrário, a autora propõe que gênero e raça são marcadores dentro de uma estrutura de diferenças que deveriam ser respeitadas como existências possíveis ao invés de existências meramente patológicas.

São tantas as investidas no sentido da patologização que, em 1999, o Conselho Federal de Psicologia cria uma resolução que proíbe psicólogos brasileiros de oferecer ou colaborar com qualquer serviço que promova tratamento ou cura para homossexualidade, numa tentativa de frear o conservadorismo nesse campo. Ainda assim tentativas da bancada evangélica de romper essa resolução ganham a atenção da mídia até hoje – lembrando o caso recente de 2018 quando o Supremo Tribunal Federal julgou como inconstitucional uma sentença que tornaria possível a terapia para reorientação sexual. Foi também em 2018 que a Organização Mundial de Saúde retirou a transexualidade da lista de doenças mentais; é um avanço, mesmo que a correção ainda não tenha sido feita nos principais manuais diagnósticos mundialmente usados.

Apesar desses avanços, em 2019, na França, 80 psicanalistas assinaram um manifesto intitulado: “Psicanalistas se levantam contra o assalto dos ‘identitários’ no campo do saber e do social”. Se posicionam contra os movimentos decoloniais, pós-coloniais e interseccionais afirmando que aqueles pesquisadores e intelectuais que se alinham com essas pautas na intenção de lutar contra a discriminação na verdade estão a exacerbando, promovendo ódio identitário e populismo. Para esses psicanalistas:

O pensamento dito “decolonial” se insinua na Universidade e ameaça as ciências humanas e sociais sem poupar a psicanálise. Este fenômeno está se espalhando de forma preocupante e não hesitamos em falar de um fenômeno de influência que destila sub-repticiamente ideias propagandistas. Eles transmitem uma ideologia com conotações totalitárias. Reintroduzir a “raça” e estigmatizar populações ditas “brancas” ou de cor como culpadas ou vítimas é negar a complexidade psíquica, é não reconhecer a história muitas vezes mal compreendida dos povos colonizados e os traumas que impedem a transmissão. (Masson, at al, 2019, minha tradução)

Esses psicanalistas questionam quais os ganhos em retomar os marcadores de diferença que foram utilizados historicamente para oprimir as minorias. E seguem afirmando que “A psicanálise é um universalismo, um humanismo. Ela não suporta enriquecer qualquer ‘narcisismo de pequenas diferenças’. Ao contrário, almeja uma fala verdadeira em benefício da singularidade do sujeito e de sua emancipação” (Masson, at al, 2019, minha tradução).

Essas são colocações pertinentes para que o movimento não se engesse em afirmações de reconhecimento, que são importantes para evidenciar que o universal não tem passado de uma identidade branca, cisgênera e heterossexual, mas também precisam superar a identidade para alcançar uma transformação. A intenção de um movimento social não é realizar uma revanche dos oprimidos para virarem opressores, mas de superação do próprio sistema de poder.

Por isso se faz importante compreender que evidenciar as diferenças dentro do universal não é o objetivo final das lutas sociais dos grupos minoritários, mas apenas o meio de serem escutadas dentro de um sistema que visa seu silenciamento. Assim, é pertinente questionar se esse universal abrange a todos para depois poder repensá-lo a partir de uma visão mais diversificada e abrangente, em que aqueles que sempre foram objeto de estudo também possam ser autores de si. O psicanalista francês Thamy Ayouch aponta que o que temos como universal é apenas a afirmação da identidade dominante:

A psicanálise concebe qualquer construção de identidade como uma unificação imaginária que, se pode ser politicamente real, permanece fantasmática. Essa desconstrução da fantasia de identidade deve, no entanto, ser acompanhada de uma análise do modo como funciona uma identidade implícita, na enunciação supostamente neutra da psicanálise. Se, portanto, muitos analistas descartam as identificações minoritárias como capturas imaginárias, essa mesma captura igualmente caracteriza a identidade majoritária implícita desde a qual elas/es falam (masculina, heterocêntrica, ciscêntrica, ocidental, branca, burguesa) e que também é construída, porém não é entregue à mesma crítica. (Ayouch, 2019)

A tradicional saída da clínica clássica é voltar para o singular, as particularidades de cada caso, de cada sujeito, como se essas críticas das relações de identificações precisassem ser apenas dissolvidas para que as questões sejam trabalhadas. É claro que entendemos como fundamental o deslocamento do desejo de reconhecimento para o reconhecimento do desejo, mas, se não temos em vista os traços interseccionais que atravessam essas pessoas, um relato de racismo pode não ser escutado de fato na clínica. A título de simples exemplo, podemos pensar uma situação em que a mulher negra relata ser sempre observada por seguranças antes de entrar em lugares caros e isso ser escutado como pensamento paranoico ao invés de ser levado em conta o racismo como estrutural.

Faz-se importante diferenciar esses movimentos de uma ideologia da identidade que poderia assujeitar os indivíduos aos seus rótulos, ou a uma política identitária que teria um efeito reverso de reafirmar uma subjetividade colonial como destino sem abertura para uma efetiva mudança social. Como afirma Silvio Almeida no prefácio do livro Armadilha da identidade;

A política identitária sem um horizonte de transformação do próprio ‘maquinário social’ que produz as identidades sociais gera uma camisa de força que faz com que o “sujeito” negro, mulher, LGBT possa ser, no máximo, uma versão melhorada e menos sofrida daquilo que o mundo historicamente lhe reserva. (Almeida, 2019)

A representatividade se faz extremamente necessária como estratégia de garantia de direitos para a população pobre, preta e periférica. Como nos adverte Silvio Almeida: “Em um sentido revolucionário, a afirmação da raça é feita apenas para que um dia seja possível superá- la.” A denúncia que esses movimentos sociais trouxeram tem uma importância fundamental para começar uma transformação social – sem dar voz às minorias historicamente silenciadas, sem apontar a desigual hierarquia das relações, sem derrubar o mito do universal, não há mudança possível. Mesmo que a intenção não seja a segregação em caixinhas, foi com a pauta das identidades que se abriu espaço para discussão e revisão da pluralidade de vozes e corpos que podem falar.

Seja na tentativa de silenciamento pela individualização de problemas estruturais, quanto na universalidade representada por apenas alguns poucos, trago o questionamento de Jota Mombaça, autore, brasileire não binárie; “pode um cu mestiço falar?” em que faz uma torção do texto de Spivak, escritora indiana pós-colonial, “Pode o subalterno falar?” Ou como acrescenta Grada Kilomba, psicóloga portuguesa, que aponta para necessidade de um gênero para o adjetivo ao traduzir a frase para o português “pode a subalterna falar?” propondo uma torção para o feminino, tirando a frase do universal masculino da linguagem para evidenciar as mulheres como sujeito do discurso. Ao nomear de identitários os movimentos sociais que defendem minorias ou ao dizer que querem impor uma ideologia de gênero, o grupo dominante tenta frear os avanços de conquista de direitos de uma população excluída da norma e constantemente assujeitada.

Afinal, ideológico é sempre o outro. Diante da ideologia psicanalítica que pretende afirmar uma verdade definitiva sobre o sexo, diante da insistência de muitos psicanalistas em se colocar numa posição hegemônica nos debates sobre o sujeito e sua experiência do sexual, não faria sentido a tentativa de produção de uma contra-ideologia, a busca por um pensamento contra-hegemônico? Seriam tais movimentos assim tão mortíferos para a psicanálise? (Ambra, 2021)

É preciso deslocar a discussão que tenta se fechar no tema da identidade para compreender que o que está em jogo é o reconhecimento, central nos ativismos políticos que visam práticas de autodeterminação. Vladimir Safatle em seu livro Maneiras de transformar mundos elabora sobre a possibilidade de um movimento de reconhecimento sem produção de identidade. Para ele esse seria um caminho possível para as lutas políticas atuais “por abrir espaço a uma política radicalmente pós-identitária e não fundada em demandas de reconhecimento de predicados da pessoa individualizada” (Safatle, 2020, p.14).

Isso não significa uma teoria de um lugar de poder vazio em que o reconhecimento traria efeitos pacificadores, mas sim uma teoria necessária de “corpos políticos desidênticos”. Para Safatle, é necessário compreender como o modelo capitalista influencia os modos de subjetivação atual. Para abrir caminho para transformação social precisamos primeiro encontrar as fissuras desse sistema, ele elenca a conceito de gozo em Lacan como possível furo nessa lógica.

O capitalismo não apenas codifica nossos desejos, ele também nos espolia de nosso gozo. Ou seja, contrariamente a Bataille, Lacan insistirá que o gozo não é apenas um conceito capaz de fundar uma crítica do capitalismo. Ele é também um conceito que explica as dinâmicas internas à adesão social sob o próprio capitalismo, o que complexifica tudo em demasia. Com isso, Lacan cria uma teoria da economia libidinal do capitalismo na qual os processos de socialização não serão mais pensados sob a forma da repressão, mas da incitação contábil, da eliminação da força disruptiva do gozo através da sua própria colonização. Contra isso, Lacan tentará mobilizar a força do inexistente e do impossível. Ele falará de um gozo impossível, gozo que nos faz passar da impotência ao impossível e que não terá a estrutura fálica que é constituinte das formas de gozo sob o capitalismo. Um gozo que feminiza todos os sujeitos. (Safatle, 2020, p.28)

Neoliberalismo, tentativas de furos e suas apropriações

Começamos com uma breve introdução do conceito de neoliberalismo para seguir uma compreensão dos fenômenos atuais. Trago os autores Pierre Dardot e Cristian Laval em seu livro A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal, como referência principal para abarcar esse tema. Primeiramente deve-se compreender que não estamos falando apenas de um modelo econômico ou uma ideologia; “O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida” (Dardot, Laval, 2016, p.15). Segundo os autores é um sistema de normas com influência mundial que leva a lógica do capital para as relações sociais e está presente em todas as esferas da vida.

O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modernidade”. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa. Há quase um terço de século, essa norma de vida rege as políticas públicas, comanda as relações econômicas mundiais, transforma a sociedade, remodela a subjetividade. (Dardot, Laval, 2016/2009)

A razão neoliberal, dessa forma, se apresenta como um modo de vida e principalmente um modo de relação social que se generaliza em todos os campos da experiência. A partir da compreensão de quão profunda e enraizada ela está na sociedade trago um exemplo para complexificar o debate: o uso de identidades para monetização de ideias de pertencimento de grupo. Essa é uma estratégia neoliberal para incorporar ideias que a princípio confrontam o sistema, tornando as produto de consumo, o que torna mais difícil quebrar sua lógica, como o veganismo que presa por uma mudança no consumo de carne e passou a ser um novo nicho de compra. Um grande exemplo é o que ficou conhecido como Pink Money, prática de marketing que ao considerar a comunidade LGBTQIA+ um grande mercado de consumo, utiliza-se de sua representatividade nas publicidades para aumentar os lucros. Aqui temos um exemplo claro de apropriação de uma pauta dos movimentos sociais pelo neoliberalismo, esvaziando suas implicações políticas.

Há sem dúvida alguns ganhos com a multiplicidade de corpos nas propagandas, com as referências de bonecas negras para compra e os mais diversos tons de peles nas bases de maquiagem, por exemplo – as pessoas podem se identificar com novos padrões de beleza e ter uma gama maior de modelos e o universal se expande aos poucos. São avanços que mudam concretamente a vida de quem se vê representado e tem nisso uma validação social da sua existência. Entretanto, é importante compreender que esse fenômeno não tem uma intenção de transformação social, sua estrutura segue as regras do mercado e visa o lucro que será gozado por grandes corporações. Ao tentar aproximar os movimentos sociais de minorias que lutam por reconhecimento com campanhas identitárias como essas, há uma tentativa de desmobilizar pautas que fazem uma denúncia legítima – aquele que explicita o falso universalismo excludente.

A diferenciação entre movimentos que reiteram o modelo neoliberal e aqueles que apostam em uma transformação social segue como base para esse trabalho. Ainda não sabemos se é possível furar esse sistema, mas fica a provocação:

Se quisermos ultrapassar o neoliberalismo, abrindo uma alternativa positiva, temos de desenvolver uma capacidade coletiva que ponha a imaginação política para trabalhar a partir das experimentações e das lutas do presente. O princípio do comum que emana hoje dos movimentos, das lutas e das experiências remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais. (Dardot, Laval, 2016/2009)

Para os autores a razão comum seria uma nova possibilidade de sociabilização em contraposição a razão neoliberal. Não deixam claro como seria esse novo modelo, ou como se daria, mas sem dúvida partiria do coletivo, com trabalhos cooperativos, que visão um saber comum e assistência mútua.

Clínicas públicas

Para introduzir as clínicas sociais retomo a experiência das policlínicas, clínicas públicas de Freud criadas no período entreguerras na Europa. Em seguida trago exemplos das primeiras clínicas sociais dentro das instituições de psicanálise do Brasil e encerro esse capítulo apresentando os coletivos de psicanálise que surgiram na última década.

Freud, em Caminhos da Terapia Analítica (1919), texto com base no discurso realizado no 5o Congresso Psicanalítico Internacional, em Budapeste, chama atenção para o futuro da Psicanálise no pós-guerra, sobretudo à sua extensão para as camadas mais pobres por meio de serviços públicos, e aborda a questão como algo para o futuro:

(...) gostaria de enfocar uma situação que pertence ao futuro, que para muitos dos senhores parecerá fantasiosa, mas que merece, creio eu, que nos preparemos para ela em pensamento. Os senhores sabem que a nossa eficácia terapêutica não é muito intensa. Somos apenas um punhado de gente, e cada um de nós, mesmo com um grande esforço, só pode se dedicar a um número pequeno de pacientes... suponhamos que através de alguma organização conseguíssemos multiplicar o nosso número, de modo que fôssemos suficientes para o tratamento de massas maiores de pessoas. (Freud, 1919)

Ressalta também que naquele momento estavam limitados às camadas abastadas e da alta sociedade e, em contrapartida, se atenta às possíveis necessidades de assistência às camadas mais pobres da população:

(...) pode-se prever que em algum momento, a consciência da população acordará e a alertará para o fato de que o pobre tem o mesmo direito à assistência anímica que ele já tem agora à assistência cirúrgica, que salva vidas. E que as neuroses não são menos ameaçadoras à saúde da população que a tuberculose e que, assim como está, não podem ser deixadas a cargo de cada pessoa do povo. (Freud, 1919)

Essa questão segue ainda muito atual e sem solução satisfatória. Cabe ressaltar que em seu discurso Freud menciona que esses tratamentos seriam gratuitos e que era dever do Estado concebê-los como algo urgente. Temos no Brasil o Sistema Único de Saúde, o SUS, um exemplo de atendimento público e gratuito. Seus princípios são de universalidade, equidade, integralidade, descentralização e participação popular. O atendimento psicológico é possível dentro do SUS por meio das UBSs, CAPSs e hospitais. Seu projeto de atendimento à população parte da premissa do direito universal à saúde como condição de humanidade e é muito bem estruturado, de modo que hoje a Psicanálise já está inserida nos serviços das instituições públicas e não se restringe ao consultório particular clássico com um divã. Porém, sem interesse político em investir em saúde pública, como por exemplo o congelamento de verba para saúde por 20 anos2 , muitas pessoas seguem desassistidas de sua saúde mental.

Elizabeth Ann Danto em As clínicas públicas de Freud – psicanálise e justiça social (2019) nos mostra que as tentativas de democratizar os acessos à saúde mental não são uma novidade, mas curiosamente ficaram apagadas pela história após a Segunda Guerra Mundial. Sinais atuais desse apagamento são a constante associação entre o setting em psicanálise e o consultório particular individual de classe média alta, como se apenas neste local se realizassem sessões, e fora dele já estaríamos adentrando no campo da psicologia social. Entre 1920 e 1938 temos exemplos de mais de 12 clínicas de atendimento gratuito em sete países europeus. Algumas experiências de atendimento gratuito se tornaram possíveis por meio de uma troca por formação em psicanálise.

Danto sintetiza com maestria as problemáticas que Freud enfrenta ao pensar em uma clínica psicanalítica do social, “A possibilidade de mudar a psicanálise, de uma terapia exclusivamente individualizante para uma abordagem mais ampla e ambiental dos problemas sociais dependia de quatro pontos críticos: acesso, alcance, privilégio e desigualdade social” (Danto, 2019, p.10). Podemos pensar nesses quatro pontos como chaves até hoje para pensar a implementação de clínicas de psicanálise.

Algumas clínicas sociais nas instituições de psicanálise no Brasil

Para compreender o aumento na última década de coletivos de psicanalistas que oferecem atendimento através de novos dispositivos clínicos, proponho uma retomada das clínicas sociais existentes previamente. A maioria das clínicas estão dentro das escolas de formação de psicanálise que se pautam no tripé freudiano de 1) estudo, 2) supervisão e 3) atendimento, como base fundante da formação de um analista. Podemos perceber que essa lógica permanece nos coletivos que trabalham teoria e prática a partir da psicanálise. Segundo Rafael Lima, co-fundador do Instituto de Pesquisa e Estudos em Psicanálise nos Espaços Públicos (IPEP); “É perfeitamente aceitável que a ‘invenção’ do tripé da formação psicanalítica seja creditada à Policlínica de Berlim, que se encarrega de sedimentar a intuição ferencziana da obrigatoriedade da análise do analista como dispositivo de formação, somado aos estudos junto às associações e grupos e às supervisões” (Lima, 2019, p.300).

No Brasil existem alguns exemplos de instituições renomadas de psicanálise que atuam ou não frente essa área. Uma das principais instituições, a Escola Brasileira de Psicanálise, fundada em 1995, por exemplo, não tem clínica social e seus cursos de formação têm custos altíssimos, gerando um recorte econômico claro de quem pode se tornar um Analista Membro de Escola e de quem será atendido por esses analistas.

Outra instituição, ainda mais antiga e que já conta com uma clínica voltada para atendimentos com valores mais acessíveis à população, é o Instituto Sedes Sapientiae, fundado em 1975. Há uma preocupação em manter uma clínica social, porém sua formação de analistas também tem um alto custo, superando um salário-mínimo. Atualmente a instituição recebe os interessados em começar um processo de análise com uma triagem em grupo realizada em três encontros marcados em horário comercial e com o custo de 50 reais por encontro. No final dos três encontros os participantes são encaminhados para atendimentos individuais ou em grupo com analistas da rede. Em 2018, com o clima de angústia causado pela pré-eleição que culminou na posse de Jair Bolsonaro, o Sedes criou o projeto “Rodas de conversa Escuta Sedes” que segue gratuito e aberto para novos participantes até hoje.

Já a primeira fundação de psicanálise no Brasil, a Sociedade Brasileira de Psicanálise, fundada em 1951, tem até hoje uma diretoria de “atendimento à comunidade”, criado na década de 1960 pela iniciativa de Virgínia Leone Bicudo. Vale ressaltar que Bicudo foi a primeira psicanalista não médica no Brasil, uma mulher negra que teve sua tese de mestrado com o título “Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”. Trata-se da primeira tese sobre relações raciais no Brasil, porém, a autora só publicou seus escritos 65 anos após sua defesa. Escrevia frequentemente para publicações internacionais, mas seus pensamentos encontraram resistência em seu país.

Formação de psicanálise

Apesar de vermos uma direta influência dos experimentos clínicos europeus do período entreguerras e as clínicas sociais no Brasil, percebemos o difícil acesso a essa parte da história nas formações tradicionais de psicanálise, parte por conta da recepção dos textos psicanalíticos em nosso país. Um exemplo é o livro de Elizabeth Ann Danto As clínicas públicas de Freud: Psicanálise e justiça social, publicado originalmente em 2005 e traduzido para o português apenas em 2019. Outro exemplo da dificuldade de recepção de algumas obras no Brasil é de Grada Kilomba em Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano, publicado no Brasil também em 2019, mais de dez anos depois do original em inglês. Esse atraso nas publicações ou mesmo ausência de material acadêmico e literário que pauta questões raciais nos faz compreender alguns recortes de como a clínica clássica se estrutura e perpetua, pois o fenômeno em si indica como é a formação dos analistas que a compõem.

As clínicas sociais institucionais, por serem criadas dentro das instituições de formação de psicanálise, têm uma proposta de atendimento à população mas, ao mesmo tempo, também são um meio de solucionar uma demanda interna de prática clínica – ou seja, não fica exatamente claro qual das demandas é mais importante. Dessa forma, aqueles que querem se tornar analistas conseguem começar a atender na instituição supervisionados por seus professores. Para Rafael Lima essa prática não se mantém a longo prazo como um pensamento crítico social dos analistas:

Não obstante, não são muitas as “clínicas sociais” de institutos de formação de analistas que comportam a vocação crítica que lhes caberia, acabando por secundara-la a uma etapa da formação institucionalizada, a ponto de muitos psicanalistas se sentirem “desobrigados” a “atender de graça” quando “formados”. (Lima, 2019, p.310).

O que percebemos nas formações em psicanálise são escolas com claro recorte de classe e não por acaso composto por analistas brancos, salvo raríssimas exceções. Mesmo em universidades públicas que poderiam quebrar com esse recorte econômico por serem gratuitas, e recentemente com o sistema de cotas, basta um teste de pescoço para ver que seguimos encontrando pessoas brancas e em sua maioria de classe alta. Apesar dos processos seletivos para ocupar esses espaços sugerirem uma avaliação por mérito dos melhores candidatos, há barreiras invisíveis colocadas na conta subjetiva da transferência entre alunos e professores.

Nas formações de psicanálise é comum se exigir uma análise didática com os analistas da escola para que outro analista o reconheça como par a partir do desenvolvimento de sua análise pessoal em que se identifica com esse semblante. Mesmo para Lacan que propõe que o próprio analista que se autoriza como tal, ele segue afirmando que precisa de outros que também o validem, mesmo que seja a própria escola que faz parte e seus analisantes, sem precisar de um certificado formal. Assim, criou-se uma imagem do psicanalista e de como ele deve agir muito enrijecida, como aponta uma das fundadoras do Coletivo Margens Clínicas, Anna Turriani:

Se a prática clínica visa sustentar espaços que auxiliem os sujeitos a se desidentificar de si mesmos, por que as formações em psicanálise sustentam espaços que produzem tamanha identificação dos psicanalistas consigo próprios? Talvez na busca por respostas possamos compreender por que a psicanálise vem fracassando em seu legado revolucionário e, ao limitar-se apenas a ‘suscitar pequenos reajustes com os quais possibilita a preservação do marco no qual ocorre’, favorecer a violência política e a consolidação de zonas onde uns têm mais direitos e legitimidades que outros. (Turriani, 2019)

Como até o psicanalista acaba por ter uma imagem enrijecida, isso gera um déficit político, porque não tem psicanalistas pretos e consequentemente o ativismo do movimento negro no campo da psicanalisa fica defasada. O mesmo ocorre para pautas de gênero e sexualidade. Vemos no meio psicanalítico uma repetição de um padrão social e a importância de começar a transformação no próprio meio e compreender as resistências que aparecem nesse processo.

Coletivos de psicanálise no Brasil a partir de 2013

As clínicas que começam a surgir na última década não têm mais necessariamente um vínculo com uma universidade ou qualquer instituição de ensino e passam a ter uma nova característica: são motivadas pelas urgências sociais atuais e com isso criam especificidades de acordo com o seu território. Os coletivos são formados por pessoas que, por vezes, não encontram espaço para suas inquietações nas escolas e instituições de psicanálise existentes e decidem criar seus próprios espaços. Frequentemente, eles estão alinhados com pautas antirracistas, feministas, de consciência de classe, buscando uma democratização maior da psicanálise. A quantidade de coletivos aumenta no mesmo período em que os movimentos de luta por reconhecimento de minorias políticas ganharam maior visibilidade e é possível ver a influência dessas pautas. Para Rafael Lima existem três motivos para esse fenômeno atual:

Há um conjunto de motivos que podem ser elencados que configuram o cenário geral da emergência destes dispositivos públicos de tratamento: 1) uma certa descrença estratégica nos establishments institucionais de formação de psicanalistas – algo que frequentemente é traduzido como descrença em instituições (mas penso que a descrença aponta mais para establishments institucionais do que para as instituições propriamente ditas); 2) a chamada ausência de um suposto grande mestre na psicanálise hoje no mundo; e 3) à posição supostamente “marginal” da psicanálise no Brasil em relação ao universo continental. (Lima, 2019, p.293)

O autor compreende que a descrença nas antigas instituições de psicanálise somada ao fato de nenhum novo líder para unificar os insatisfeitos em torno de práticas mais abrangentes que incluíssem aqueles que sempre ficaram às margens desses saberes da psicanálise, motivou a criação dos diversos coletivos. Partindo desse cenário, alguns psicanalistas voltam a se sentir convocados à questão social e a uma prática menos excludente.

Em A Psicanálise em Situações Sociais Críticas: Metodologia Clínica e Intervenções (2020), Jorge Broide e Emília Estivalet Broide colocam a atuação dos analistas frente à desigualdade social como sua responsabilidade ética perante o mal-estar na cultura. Os autores acreditam que as urgências sociais e as pessoas em vulnerabilidades diversas convocam os analistas a criarem dispositivos de escuta. Os autores apresentam o conceito de escuta territorial “que consiste na construção coletiva de mapas das relações afetivas, culturais, econômicas, políticas, formais e informais, dos diferentes poderes lícitos e ilícitos que constituem o efetivo laço social no território” (Broide e Broide, 2020, p.48) para pensar a construção de dispositivos clínicos e suas intervenções na cidade.

Trata-se de um conceito muito interessante para explorar as particularidades culturais de cada região sem propor uma prática universal que valha para qualquer atendimento. Esses dispositivos surgem a partir da escuta das situações sociais críticas, ou seja, nas e para as urgências sociais, pensando juntamente ao território e seus atores as possibilidades de direções, cuidado, reparação, e construção coletiva dos modos de operação e metodologias específicas para pensar aquela urgência. Há que compreender o contexto social e os mecanismos que alicerçam esse sistema e suas consequências subjetivas.

Ao analisar os diversos dispositivos clínicos de psicanálise pública que surgiram na última década, percebe-se logo em seus nomes – como, por exemplo, Clínica Periférica, Clínica de Borda ou Clínica nas Margens – uma posição descentralizada e territorializada. Esses dispositivos se nomeiam em sua maioria como coletivos e são organizações autogeridas, horizontais, abertas, flexíveis e situacionais, como um centro de convergência de práticas que dialogam com outras áreas de forma interdisciplinar e atuam dentro e fora do contexto acadêmico (Perez, & Silva Filho, 2017).

Os coletivos se alinham a pautas decoloniais, antirracistas e feministas ao perceber que a escuta não é neutra, mas sim enviesada para uma parcela da população branca cis-heteronormativa que se diz hegemônica. Em anexo temos uma lista dos coletivos de psicanálise criados nos últimos anos que encontramos em busca on-line. Para esse trabalho apresento apenas um coletivo para nos aprofundarmos dentro desse movimento, coletivo conhecido bem de perto pela pesquisadora que vos fala já que faz parte desde sua primeira reunião em 2017. Assim, deixo claro que a descrição da instituição vem junto com a inseparável subjetividade de quem trabalha dentro do coletivo, com todas as crises e críticas que fazem parte dessa relação.

Rede DIVAM

“Coletivo de psicanalistas e feministas que proporcionam acolhimento na perspectiva de democratizar o acesso à saúde mental para mulheres e LBTQIA+”

A Rede DIVAM (Debates Integrados pela Valorização e Atendimento das Mulheres) é um coletivo de mulheres psicanalistas e feministas de São Paulo que existe há seis anos (desde junho de 2017). O coletivo é composto por psicanalistas, psicólogas e uma médica da família e comunidade. O grupo atualmente é composto por oito mulheres com trajetórias diversas que compartilham do posicionamento político de uma prática de escuta ampliada às interseccionalidades (raça, classe, gênero e sexualidades) e do desejo de democratizar o acesso à saúde mental.

A proposta do projeto é articular as ferramentas de escuta das psicanálises com o olhar crítico dos feminismos no acolhimento de mulheres, promovendo atendimentos em saúde mental, atividades formativas e ativismo. O coletivo é autofinanciado, não recebe verba governamental, nem subsídios vindos de outras instituições. No percurso do projeto, cerca de 400 mulheres foram atendidas em toda a cidade de São Paulo. Durante a pandemia, com a realização de grupos de terapia online, o projeto alcançou também mulheres de outros Estados do Brasil. Atualmente as vagas para atendimento são abertas conforme a disponibilidade das analistas.

O coletivo começou com a proposta de atender mulheres vítimas de violência que não encontravam acesso a atendimento de saúde mental na rede pública e não tinham condições econômicas para manter um tratamento particular. A ideia veio a partir de um caso real de uma moça que havia acabado de se mudar para São Paulo após sofrer uma tentativa de feminicídio, e precisava “sumir do mapa”. Ainda com as cicatrizes no pescoço e sem residência fixa, não conseguiu vaga para atendimento psicológico no SUS nem em clínicas escolas e seguiu em fila de espera de alguns serviços.

Dada a urgência da demanda deste primeiro caso, os atendimentos foram pensados em modelo de plantão, mas com o tempo começaram a ser realizados por agendamentos. Ao perceber que muitas mulheres em situação de violência não se viam como vítimas de violência e deixavam de procurar o projeto, os atendimentos foram abertos para todas as mulheres sem fazer referência a casos de violência, compreendendo que essa mudança facilitaria o acesso dessas mulheres que só se compreenderam nessa situação após começar um processo de análise.

Assim, criou-se uma estrutura clínica para atender essas mulheres que começa no dispositivo de acolhimento, segue com os atendimentos e as covisões clínicas e se sustenta com os grupos de estudo, tendo como base o tripé freudiano da psicanálise. O acolhimento é a porta de entrada, muitas mulheres que procuram o coletivo buscam por qualquer tipo de ajuda e não sabem nem o que é uma análise. Nesse momento delineamos com cada uma as suas queixas e demandas para encaminhar para uma das analistas da rede. Se for o caso, encaminha-se também para mais profissionais da saúde ou outros acompanhamentos como, por exemplo, uma parceria com um coletivo de juristas feministas. Nesse momento é possível dar algum contorno à demanda mesmo que o foco seja o acolhimento; disponibilizando um lugar seguro de fala. Ao longo do projeto se percebeu que a escuta vir de uma mulher era parte importante desse estabelecimento de vínculo e confiança com as analistas e com a instituição. Apesar do foco do projeto ser atendimento de mulheres, cis ou trans, de qualquer sexualidade, também abrimos vagas para homens trans e pessoas não-binárias ou queers, compreendendo que também traziam sofrimentos relacionados a opressões de gênero.

O dispositivo de covisão foi criado como espaço coletivo de discussão de casos. Recebe esse nome pois a proposta é que não haja uma hierarquia: todas as integrantes escutam e relatam casos e suas percepções clínicas. Além de possibilitar essa troca de experiência profissional, é um importante ambiente de cuidado de questões pessoais, compreendendo que as analistas também são mulheres e submetidas a violências, sendo imprescindível uma atenção cautelosa para os intercruzamentos dessas questões na transferência. Na covisão os casos trazidos são analisados para além da psicanálise, buscando identificar os atravessamentos intersecionais de raça, gênero, classe e sexualidade na vida das mulheres atendidas. Busca-se uma perspectiva de estudo engajada com o ativismo social para uma análise estrutural da sociedade e de como esses marcadores de diferença impactam na vida dessas mulheres.

O grupo de estudos tensiona as pesquisas em feminismos e psicanálise. O coletivo não se prende a nenhuma vertente do feminismo, com o intuito de expandir o conhecimento dos feminismos de forma crítica e atenta à sociedade. Também não se limita a nenhuma linha teórica da psicanálise: cada analista busca acrescentar sua perspectiva clínica à discussão. O grupo de estudos tem como objetivo a longo prazo tornar-se uma formação clínico-política. Compreende- se o sofrimento como sociopolítico e, portanto, a formação feminista segue essencial na contínua construção da escuta clínica.

Ao longo de anos de troca de casos clínicos foi possível perceber que o traço que se repetia nas histórias das pacientes seguia sendo o da violência sofrida. Cada caso trazia uma singularidade de história e vivência, mas compreende-se que essa repetição ocorre pela estrutura patriarcal em que vivemos. Assim, em 2020 criou-se o primeiro grupo terapêutico apostando no potencial transformador da troca entre as mulheres que buscam o coletivo.

Para além da clínica outro alicerce do projeto é o ativismo político em pautas de gênero que dizem diretamente do direito à vida e subjetividade das mulheres; pautas como legalização do aborto, luta contra o feminicídio e violência contra a mulher, violência obstétrica, equidade de direitos e remuneração, entre tantas outras. Na questão do aborto, por exemplo, temos uma barreira clara do Estado legislando sobre o corpo das mulheres, dificultando os esforços analíticos em torná-las sujeitos de suas decisões, apontando limites práticos da clínica psicanalítica. Quando falamos de atendimento de mulheres e das opressões estruturais cotidianas e institucionais que as atravessam, dizemos de uma dimensão que é coletiva, mas que incide de maneira diferente em cada corpo e vivência, sendo assim necessário intervenções diferentes nos dois campos, o particular e coletivo.

Problemáticas de associar psicanálise e feminismo

Uma crítica de psicanalistas a projetos que associam psicanálise a outros saberes é por supor que essa junção seria uma estratégia de marketing para atrair mais pacientes. Essa crítica não se aplica ao projeto, já que a maioria dos atendimentos são realizados pelo dito valor social ou gratuito. Outra questão levantada é se suporíamos que apenas uma mulher teria a escuta atenta para esses casos. Compreendemos que não é preciso ser uma mulher para atender outra mulher como se estivesse na similaridade da vivência individual a possibilidade de escuta de uma queixa estrutural. De todo modo, existe uma demanda muito comum de mulheres que passaram por situações de violência de serem atendidas por outra mulher, e encontram um lugar seguro em um projeto composto apenas por mulheres.

Há uma projeção na similaridade de vivências, de que só outra mulher poderia escutar sua dor, criando o imaginário de que essa outra mulher a compreenderia nesse lugar pessoal. Não é intenção da análise reforçar isso, pelo contrário, retomamos a dimensão singular da experiência e muitas vezes caminhamos para desindentificação com ideais do que deve ser uma mulher ou mesmo de como deve agir uma mulher feminista. Compreendemos que mesmo o ativismo de emancipação das mulheres, às vezes, traz regras absolutas de um modo de vida; o que acaba por atrapalhar seu caráter inicial. Mesmo que a procura pelo coletivo tenha essas identificações projetivas nos levanta alguns questionamentos importantes que denunciam essas violências como estruturais de um sistema patriarcal.

Juntar feminismo e psicanálise é uma medida que se faz pertinente atualmente e que visa, a longo prazo, como Freud, um acesso universal à saúde mental. Caso um dia a equidade de gênero seja uma realidade concreta a associação com o feminismo talvez não se faça mais necessária. Até lá, o coletivo tem como alicerce o feminismo como estratégia política de luta por direito das mulheres.

Lindo o projeto, mas quem paga a conta?

Em um projeto autofinanciado, com carga horária semanal de diversas reuniões clínicas e administrativas, além dos atendimentos com valor social ou gratuito, não era de se esperar outra coisa senão um grupo majoritariamente branco de classe média e alta da zona oeste de São Paulo. Sem a estrutura de uma universidade ou uma clínica escola, as analistas que ainda iniciantes em suas clínicas se viam sobrecarregadas de casos demandantes e não fechavam suas contas do fim do mês. Mesmo com a criação de uma sala em que as analistas não teriam custos para realizar os atendimentos da rede era constante a fala de sobrecarga das integrantes. A sala ficava na Casa das Mulheres na Barra Funda até o início da pandemia – o local do coletivo é também sede de outros projetos feministas de diferentes áreas.

Diminuímos os horários de acolhimento e por tempos fechamos as portas para novos atendimentos; passamos a ser mais um serviço com fila de espera. Organizamos os encaminhamentos para que cada analista recebesse em mesma proporção mulheres que não podem pagar, mulheres que podem pagar um valor mínimo estipulado pelo coletivo e mulheres que podem pagar mais que esse mínimo. O valor exato é combinado com cada analista, mas a criação das três faixas de valores cria uma organização econômica e torna a rede de encaminhamentos mais sustentável.

Em 2021 recebemos uma proposta da The Body Shop, que se identificou com o projeto, para financiar algumas de nossas atividades daquele ano. A empresa vende cosméticos veganos e tem um longo percurso no ativismo contra teste em animais, e a cada ano incentiva novos projetos liderados por mulheres. Por conta desse engajamento social fez sentido para o coletivo realizar essa parceria com uma empresa privada. Desse modo foi possível oferecer grupos de terapia gratuitos, o que tirou da conta das mulheres atendidas e das que atendem os custos desse trabalho.

Em 2022 demos início ao processo de formalização do coletivo para se constituir como uma associação e poder participar de editais de financiamento do projeto. Ainda estamos elaborando possibilidades de articulação entre público e privado como mais uma saída para essa questão que parece ser financeira, mas que revela um furo de saúde pública grande demais para os coletivos que tentam cobri-lo. Vale questionar o alcance dos coletivos, o modo como podem ou não se colocar em rede com o sistema público e se não estamos trazendo para pessoas físicas as problemáticas sociais que cabem ao Estado, entrando na lógica neoliberal onde até as pautas sociais passam a ser questões e objetivos individuais.

Pagamento e valor de sessão (vamos falar de dinheiro)

O Concelho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) estipula que o valor de psicoterapia individual deve ter como referência o valor limite inferior de R$ 199,50, limite médio de R$ 288,93 e superior de R$ 342,11. Na psicanálise não temos valores de referência, já que não é uma profissão regulamentada. Muitos profissionais não chegam a ter nem um valor único para seus atendimentos, sendo comum a prática dos pacientes estipularem o valor para a sessão. Para a psicanálise o valor pode tomar outras dimensões para além da financeira. A psicanalista francesa Françoise Dolto, por exemplo, no atendimento com crianças, cobrava delas desenhos ou objetos sem valor financeiro como pedras ou folhas como pagamento, na tentativa de dar autonomia e responsabilidade ao processo de análise daquelas pessoas.

Ao atender pessoas sem um recurso financeiro entende-se que mesmo assim há um grande investimento por parte do analisante, seja em seu deslocamento até o consultório, seja em sua implicação em seu tratamento. Alguns analistas propõem assim como Dolto um pagamento por meio de outros recursos, como poesias, relato de sonhos, desenhos ou outros arranjos a partir dos recursos internos de cada um. Cria-se, assim, um acesso à psicanálise por parte de pessoas economicamente excluídas, porém, quando um profissional autônomo faz isso em seu consultório particular ele cria uma possibilidade por meio de seus privilégios e escolhas, já que para fazer isso ele deve ter suas contas fixas pagas, pois não será possível pagar a luz do consultório com poesia. Ou seja, apenas pessoas economicamente privilegiadas, que já atendem outras pessoas de classe alta que pagam mais de um salário-mínimo por mês de análise, que conseguem propor reparações sociais dentro da clínica como essa.

Dessa maneira, o que poderia ser visto como engajamento social na clínica particular acaba por ser um privilégio para poucos que já atendem um público de classe média e alta. Enquanto a maioria dos profissionais da área se sentem obrigados a aceitar valores bem abaixo do mercado pagos por convênios de saúde, não por querer acessibilizar a psicanálise, mas para sustentar sua própria vida e clínica. Em resumo, a questão que fica é como se cria tamanha disparidade de ganhos dentre profissionais da mesma área.

Na clínica social é frequente a busca por atendimento com um valor abaixo do mercado, atendimento este chamado de atendimento social ou por um valor social. Essa busca nos faz questionar se o acesso a psicanálise se dá apenas pelo meio financeiro, no sentido de que a barreira de classe é a principal. A resposta é não, mas não deixa de ser também financeiro. Precisamos falar de dinheiro sem dedos para não cair no pensamento do salvador branco caridoso e poder abrir espaço para novas propostas de clínica que procurem uma transformação social de fato.

Divam ltda. (divam.com.br) - Clínicas on-line (on demand)

“Conectando você ao seu melhor - Uma jornada eficaz para unir seu eu com os melhores psicólogos.” (divam.com.br)

Em cinco passos rápidos o site promete uma boa consulta com o psicólogo com o qual você mais se identifica. A busca do profissional pode ser realizada por linha de tratamento, por disponibilidade de atendimento ou idioma. A plataforma garante um acesso aos psicólogos através do chat, mesmo quando estão off-line, fora de sua jornada de trabalho e o site convoca os usuários a avaliarem o atendimento para contribuir com a evolução do aplicativo. O usuário pode assinar planos mensais, trimestrais ou o empresarial. Fechando um plano é possível ter flexibilidade de agenda para desmarcar atendimentos com até 24h de antecedência com retorno do crédito referente ao valor da sessão. Esses planos contêm também conteúdos exclusivos de vídeos, artigos e podcasts.

Os psicólogos que desejam se cadastrar para realizar atendimentos também têm toda facilidade de acesso aos conteúdos do aplicativo, que se propõe o melhor parceiro de sua carreira. A plataforma oferece um consultório na palma da sua mão: liberdade de agenda, gerenciamento do seu tempo, controle da sua agenda e de seus dados financeiros para construir sua renda. Os atendimentos on-line geram mais tempo para os profissionais, que podem trabalhar no conforto da sua casa.

O site segue com suas dúvidas mais frequentes, começando com “O DIVAM é gratuito?”. Pode parecer uma pergunta estranha para um site que está oferecendo serviços, mas essa informação remete a uma especificidade da área da psicologia que não pode divulgar preços como atrativo. Por um tempo o site contava com valores de pacotes, mas foi retirado o anúncio. O Conselho Federal de Psicologia deixa claro que não se deve fazer propaganda de atendimentos utilizando o preço como atrativo, como segue a nota técnica 01/2022, sobre o uso profissional das redes sociais: publicidade e cuidados éticos:

Quando da divulgação dos serviços profissionais, orienta-se que o preço não seja usado como forma de propaganda, conforme disciplina o art. 20, alínea “d” do CEPP, abstendo-se de utilizar termos como: preço social, atendimento social, desconto, pacote promocional, valor acessível e similares e demais termos que façam referência a vantagem financeira do serviço. Informa-se também que não é permitido o uso de cupons promocionais e sorteios. Por sua vez, a divulgação de convênios com instituições, universidades, faculdades, clínicas é permitida. A divulgação de trabalho voluntário não está impedida, dessa forma a psicóloga e o psicólogo devem analisar a viabilidade do atendimento e apenas oferecê-lo quando puderem garantir a continuidade e a qualidade do serviço. É inadequado o atendimento voluntário com a finalidade de captação de clientes.

https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2022/06/SEI_CFP-0612475-Nota-Tecnica.pdf

O site retira a divulgação dos valores dos pacotes mensais com preços que ficavam abaixo de 50 reais a sessão, e esclarece que o cadastro na plataforma é gratuito para clientes e profissionais, mas o serviço é pago com valores a depender do pacote. Vale ressaltar que outros sites de cadastros de profissionais da saúde cobram taxas mensais para manter seu perfil ou cobram parte do valor de cada sessão realizada, como o Psicologia viva, Zenklub, Psicoblue, entre outros. Mesmo com essa restrição do Conselho em uma busca rápida é possível encontrar sites como PsiMeet que em suas perguntas mais frequentes, tem como primeira: “Quanto custa a terapia online social?” Com a seguinte resposta: “Todos os atendimentos sociais custam 30 reais. Nossos psicólogos são apaixonados pelo que fazem e estão prontos para atender você. Comece agora!”. O que dá a entender que a terapia online social deve ser custeada pelo amor de seus psicólogos, que não trabalham por dinheiro.

Ao analisar as redes sociais da plataforma DIVAM voltamos às contradições. As postagens são em sua maioria frases de autoajuda, como: “se custa sua paz, o preço está muito alto”. Há ainda diversos conselhos do que fazer em momentos de adversidade e vídeos de blogueiros pagos para dizer da importância de cuidar da sua saúde mental, divulgando a página e oferecendo um cupom de desconto.

Um case de sucesso

O atendimento online tem obtido grande sucesso nos EUA, com diversas plataformas e aplicativos com psicólogos e terapeutas licenciados cadastrados para que os clientes possam escolher o profissional de sua preferência. A maior plataforma é o Better Help, que conta com mais de 4 milhões de pessoas assistidas, número expressivo que evidencia uma crescente demanda por cuidados de saúde mental e que encontraram nesse aplicativo a viabilidade de tratamento. O site tem como slogan a frase “você merece ser feliz” (minha tradução) para em seguida introduzir seus serviços: terapia individual, de casal e de adolescentes. Logo, temos um contador em tempo real que traz dados numéricos impressionantes: mais de 300 milhões de mensagens, chats, telefonemas e sessões por vídeo realizadas pela plataforma. São mais de 30 mil terapeutas credenciados prontos para ajudar, disponíveis a qualquer momento e por qualquer meio de comunicação.

No final da página há um gráfico que apresenta prós e contras comparando a clínica in- office, presencial, e a plataforma Betterhelp. Ambos têm terapeutas credenciados, porém, a única vantagem do in-office é ser presencial. Em contrapartida a plataforma te oferece: 1) a possibilidade de mandar mensagens para o seu terapeuta a qualquer hora, sem agendamento prévio 2) sessões via chat (conversa em tempo real por mensagens instantâneas) 3) sessões por telefone 4) sessões por vídeo-chamada, agendadas previamente 5) fácil agendamento, pois você tem acesso a agenda completa do seu terapeuta e pode escolher o melhor horário para você 6) mais de 150 planilhas digitais para te ajudar no seu processo terapêutico 7) sessões em grupo, podendo ter acesso a atividades e seminários semanais ao vivo 8) sistema de inteligência de match para encontrar o terapeuta ideal de acordo com suas necessidades, preferências e demografia 9) caso fique insatisfeito com o seu terapeuta, com um click você tem um novo match de fácil troca 10) acesso a terapia de qualquer lugar a qualquer hora. Essas informações foram retiradas do site:

https://www.betterhelp.com/

Esse é apenas um exemplo de uma extensa lista de aplicativos com nichos de atendimento mais específicos como ReGain para casais, Faithful Counseling para católicos ou o Pride Counseling para pessoas LGBTs, com foco em sentirem “orgulho”. Essa diversidade sugere não apenas uma busca por atendimento de saúde mental, mas por um espaço seguro para trabalhar demandas específicas que não seriam tratadas nas clínicas clássicas.

Pode parecer que um aplicativo como o Pride Counseling se assemelhe ao coletivo Rede DIVAM por seu recorte de atendimento de gênero, ao se preocupar com um atendimento especializado para essa população. Porém, no caso do aplicativo a associação com uma pauta de gênero não se faz por um ativismo político, mas pela venda de seus serviços oferecendo um novo nicho de mercado. Cria-se identidades de consumo e fazem ofertas personalizadas de tratamento como estratégia de competitividade no mercado atual onde autoimagem e estilo de vida são um produto. Assim, questiono se já houve em nosso campo uma apropriação de todas as pautas dos movimentos sociais atuais pelo modelo de consumo e, principalmente, de pensamento neoliberal.

Neoliberalismo e uberização do trabalhador

Nessas plataformas o atrativo é a dita liberdade tanto para o trabalhador quanto para os clientes. Vende-se um ideal de estilo de vida em que você é livre para fazer tudo do seu jeito e no seu tempo. Liberdade para fazer seu tratamento à sua maneira, facilidade de acesso em amplos significados, acesso a qualquer hora, local e modo de comunicação. No caso da pessoa atendida essa liberdade gera algumas questões importantes para pensar a clínica. O que significa para um tratamento psicológico o paciente ter acesso à agenda de seu terapeuta? Qual o tratamento possível por mensagem? Qual o resultado de um processo com um terapeuta on demand? Se a base da neurose é lidar com a castração, o que é possível em um contexto em que tudo está na palma da mão?

No caso do trabalhador, ele tem a liberdade de escolher quantas horas em média quer dedicar aos atendimentos da plataforma. Isso gera uma estimativa de valor ganho por mês, mas não um real controle de quais horas de fato vai trabalhar ou com quanto dinheiro pode contar no final do mês. Apesar de vender uma grande autonomia “nessa lógica empreendedora, a livre iniciativa se converte em obrigação de desempenho, ultrarresponsabilizando o indivíduo por seu destino, enquanto o Estado é parcialmente eximido de garantir direitos sociais” (Andrade, Côrtes, Almeida, 2021, p.3). Para os autores, esse modelo de trabalho de plataforma é fruto do neoliberalismo que se define como uma forma social de existência que se constitui como a razão do capitalismo contemporâneo.

Atualmente, no Brasil, os psicanalistas se esforçam para demonstrar como esse modelo liberal de norma de vida é causa dos sintomas de sua época, por não só reger as relações de trabalho, mas também a sociabilização no geral. Para os coordenadores do Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo, o neoliberalismo é também gestor do sofrimento psíquico que o resulta; “pois o sofrimento psíquico é não apenas produzido, mas também gerido pelo neoliberalismo” (Safatle, Silva Junior, Dunker, 2021).

Um dos frutos do modelo de vida neoliberal é o que vem popularmente se chamando de uberização do trabalho em referência ao aplicativo de viagens de carro particular. A professora e pesquisadora em ciências sociais da UNICAMP Ludmila Abílio se refere a esse trabalhador como just-in-time e pontua que:

As indistinções entre o que é e não é tempo de trabalho, a nebulosidade entre o que é e não é trabalho, as imbricações do espaço doméstico no espaço de trabalho são alguns dos elementos que compõem a flexibilização do trabalho e hoje se aprofundam sob uma nova forma de gestão e controle. (Abílio, 2020, p.112)

A autora segue afirmando que essa flexibilização abre espaço para a exploração do trabalho, transferindo os custos e os riscos de uma empresa ao próprio trabalhador, traz "suposta autonomia por uma perspectiva inversa: a ausência de qualquer garantia ou obrigação por parte das empresas" (Abílio, 2020, p.116).

O que víamos antes como exigências mínimas de direitos trabalhistas, de condições justas garantidas ao trabalhador, tem perdido sua força lentamente e abrindo espaço para uma individualização dos riscos de vida em que o trabalhador é responsável pelas suas condições de trabalho. A responsabilidade perante condições de trabalho vira uma questão pessoal e fica a cargo da sorte ou azar de cada indivíduo trabalhador. As novas oportunidades de trabalho claramente beneficiam alguns e jogam aos próprios trabalhadores o gerenciamento de seu trabalho: “A exigência absoluta de justiça foi apagada em nome de denúncias sobre a relatividade das oportunidades de que alguns se beneficiam e os riscos que outros correm” (Donzelot, 1994, p. 11). Neste modelo:

“Nada de direitos se não houver contrapartidas” é o refrão para obrigar os desempregados a aceitar um emprego inferior, para fazer os doentes ou os estudantes pagarem por um serviço cujo benefício é visto estritamente como individual, para condicionar os auxílios concedidos à família às formas desejáveis de educação parental. O acesso a certos bens e serviços não é mais considerado ligado a um status que abre portas para direitos, mas o resultado de uma transação entre um subsídio e um comportamento esperado ou um custo direto para o usuário. A figura do “cidadão” investido de uma responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem empreendedor. Este não é apenas o “consumidor soberano” da retórica neoliberal, mas o sujeito ao qual a sociedade não deve nada, aquele que “tem de se esforçar para conseguir o que quer” e deve “trabalhar mais para ganhar mais”, para retomarmos alguns dos clichês do novo modo de governo. A referência da ação pública não é mais o sujeito de direitos, mas um ator autoempreendedor que faz os mais variados contratos privados com outros atores autoempreendedores. (Dardot e Laval, 2009/2016, p.374)

A responsabilidade social se dispersa e fica sob responsabilidade individual fazer qualquer movimentação política neste âmbito. Questões que já foram da esfera pública como a promoção e gestão de saúde, passam a ser um produto de consumo próprio. Isso ocorre já que “a racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (Dardot e Laval, 2016). Sendo assim, incentiva uma “subjetividade competitiva e uma cultura empreendedora que reduzem a existência quase que exclusivamente à esfera privada, em que todas as respostas devem ser buscadas no âmbito individual, familiar e empresarial” (Andrade, Côrtes, Almeida, 2021, p.3).

Assim, podemos pensar que essa nova clínica que se propõe acessível a qualquer um, de qualquer modo e a qualquer hora, não se trata de uma clínica social, já que não estão implicadas em uma questão ética de universalizar a psicanálise, mas sim a uma falta de escolha do trabalhador em que o psicólogo se submete a novas condições de trabalho. Os psicanalistas que atendem via plataformas de convênio, ou de pacotes de planos de terapia, além de ter uma remuneração abaixo do valor estipulado pelo conselho, fazem jornadas duplas ou triplas de trabalho para alcançar um salário-mínimo, ou acabam por reduzir o tempo dos atendimentos para aumentar sua produtividade:

(...) das novas formas de gestão e gerenciamento do trabalho que têm em seu cerne o autogerenciamento e a participação do trabalhador na administração eficaz de sua própria produtividade, estabeleceram-se formas de subordinação e controle do trabalho que deixaram evidente que é possível terceirizar - até para o próprio trabalhador - parte do gerenciamento do trabalho, transferir riscos e custos, eliminar meios rígidos e publicamente estabelecidos de remuneração do trabalho, de controle do tempo de trabalho, de execução do trabalho, sem que isso signifique perda de produtividade ou de controle sobre o trabalhador. (Abílio, 2020, p. 115)

Além de estafar o trabalhador esse modelo de atendimento traz prejuízos ao próprio atendimento, ao manejo clínico, e não traz reparação social. Porém, para alguém que precisa de um trabalho, a plataforma aparece como uma possível porta de entrada em um mercado fechado entre pares de psicanalistas de escola. É ao mesmo tempo a única porta que se abre aos que não têm recursos financeiros e o que os faz se sujeitarem a atendimentos mal remunerados. Apesar de novos recursos tecnológicos para exploração do trabalho, não podemos dizer que seja algo novo no Brasil. Essa é apenas uma nova roupagem para o que Lélia Gonzalez já nos apontava que acontecia principalmente com as mulheres negras: as fronteiras do que é ou não trabalho nunca estiveram claras e muitas vezes não são remuneradas.

Considerações finais: A clínica no social tem um potencial de transformação política ou é mais uma forma de reprodução neoliberal?

Agora, como separar o joio do trigo? Em meio a precarização das condições de trabalho o acesso à psicanálise ocorre por meio de plataformas de serviço, dispositivos que visam a exploração do lucro em cima da venda de saúde mental, mas que, ao mesmo tempo, possibilitam acesso aos excluídos economicamente do mundo elitizado das escolas de psicanálise. Em contrapartida, os coletivos de psicanálise pública se formam pela elite branca gentil que trabalha voluntariamente. Em termos práticos do atendimento que é ofertado em baixo custo por uma plataforma ou por um coletivo, tem diferença para quem é atendido?

Retomo os quatro pontos elencados por Danto para uma psicanálise realmente engajada com o social: acesso, alcance, privilégio e desigualdade social. Em análise, a clínica clássica como trabalhamos aqui, não promove acesso à maioria das pessoas exatamente por fazer um recorte por privilégios acentuando a desigualdade social. As clínicas on-line, em contrapartida, focam bastante em promover acesso e alcance. Porém, por meio de uma oferta neoliberal que explora alguns para que outros lucrem, seguem reproduzindo lugares de privilégio e desigualdade social.

As clínicas sociais se desdobram para pensar em como tornar a psicanálise mais acessível e promover um maior alcance, porém, têm um limite baixo de pessoas atendidas já que são poucos analistas atendendo, em contraposição, por exemplo, a milhões de pessoas atendidas pelas plataformas virtuais. Os coletivos atendem pessoas que normalmente não teriam acesso a psicanálise, tentando criar furos na brutal desigualdade social, porém, ainda é preciso questionar se renunciamos aos privilégios.

Mesmo sem remuneração nos trabalhos voluntariados, compreende-se que se recebe um capital simbólico que forma a carreira e nome de muitos analistas que participam de alguns coletivos, abrindo para eles novas portas dentro do meio de indicações – tão importantes nessa área. Uma alternativa para repensar esses lugares de privilégio é fazer um projeto com uma escuta territorial a partir da demanda de cada local e seus integrantes. Outro ponto importante para repensar a hierarquia dentro do meio psicanalítico é o acesso às instituições de formação de psicanálise; em busca de diversificar as pessoas e ter cada vez mais analistas que fujam ao “padrão universal”.

Nesse trabalho utilizamos a separação entre clínica clássica e social para evidenciar as mudanças propostas pelas novas clínicas que atuam no social. O termo clínica social é comumente utilizado por quem busca esses projetos por serem excluídos do acesso às clínicas particulares ou do próprio sistema público, mas compreende-se que são ambas apenas clínicas psicanalíticas. Porém, é interessante pensar se essa separação, que se dá no imaginário popular, pode apontar um resquício de pensamento colonial em que há portas diferentes de entrada. Como no exemplo trazido sobre a empregada doméstica citada por Lélia Gonzalez: para uns a porta da frente, para outros, a de serviços. Na psicanálise as pessoas se dividem entre aquelas que buscam por uma boa indicação de analista e as que buscam alguém que atenda por um valor social. Mesmo que cheguem no mesmo analista, seus caminhos passam por portas diferentes.

Outra questão emerge a partir dessa: esse formato de busca por análise com valor social seria um traço da psicanálise brasileira em que separa, já na linguagem, que porta cada pessoa acessa para ter o mesmo processo de análise? – isso se for o mesmo. Se na psicanálise o preço da sessão pode alterar para cada paciente, o que diferenciaria um caso de um caso social? A solução para essa problemática estaria dentro dos consultórios particulares, que disponibilizam algumas vagas de atendimento social?

Como voltar essas demandas sociais de volta à esfera pública, lembrando que o neoliberalismo levou para esfera individual a responsabilidade do coletivo? “Agora somos menos soberanos e mais empurrados a nos converter em autônomos, menos responsáveis individualmente e mais chamados a nos implicar coletivamente” (Donzelot, 1994, p. 11, minha tradução). Seria a clínica social praticada nos consultórios particulares uma tentativa de suprir essa demanda, mas alienada de uma luta coletiva por transformação social? Seria um alívio egóico pela ideia de fazer alguma justiça social, mas que sem nenhuma articulação política para quebrar as bases do sistema que gera essa desigualdade e falta de acesso à psicanálise, acaba por fazer parte da engrenagem elitizada que retroalimenta a culpabilização do sujeito? São perguntas pertinentes para a discussão.

As clínicas públicas têm sido um fértil exemplo de experimentação clínica no Brasil atual, e colocam em xeque conceitos fundamentais da psicanálise. Um exemplo são as clínicas montadas em praça pública em que diversos analistas escutam os transeuntes, e mesmo que uma pessoa volte na semana seguinte não há garantia de ser atendido pelo mesmo analista. Coletivos assim apostam em um vínculo com o projeto e transferência com o coletivo, em detrimento do mero individual. Essa proposta abre novas possibilidades para além do tratamento com apenas um analista, se alinhando a perspectivas de saúde pública integrada em que se trabalha em equipes multidisciplinares. Esses coletivos resistem ao movimento de apropriação neoliberal das pautas identitárias trazidas dos movimentos minoritários, buscando saídas criativas para as problemáticas econômicas e se aproximando de uma razão comum. Além de trazerem furos à psicanálise ao dar voz às pessoas que não são escutadas pela clínica clássica, o que pode ser um potencial fator de transformação para uma nova prática que surgiu no Brasil.

A transformação social ocorre quando mudam as relações de desigualdade e poder. Os coletivos tentam realizar deslocamentos na prática analítica e entram em ativismos sociais em busca dessa nova razão, em que “Um grupo, uma instituição, só possui um sentido se tiver uma tarefa coletiva para a transformação social que permita que o sujeito humano avance em sua luta contra o desamparo e contra o gozo de um em detrimento da vida dos outros” (Broide e Broide, 2020, p.46). Deste modo:

Cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. O governo dos homens pode alinhar-se a outros horizontes, além daqueles da maximização do desempenho, da produção ilimitada, do controle generalizado. Ele pode sustentar-se num governo de si mesmo que leva a outras relações com os outros, além daquelas da concorrência entre “atores autoempreendedores”. As práticas de “comunização” do saber, de assistência mútua, de trabalho cooperativo podem indicar os traços de outra razão do mundo. Não saberíamos designar melhor essa razão alternativa senão pela razão do comum. (Dardot e Laval, 2009/2016 p.392)

A partir disso, é possível afirmar que essas clínicas têm um potencial de transformação social, porém ainda há um caminho necessário a percorrer que pode ser em articulação com o sistema público e ou setor privado para tornar os coletivos projetos sustentáveis e de participação mais plural. Possibilitando assim que as plataformas online não apareçam como única porta de entrada do mercado de trabalho desta área para muitas pessoas. As clínicas trazem a aposta de que novas pessoas nos lugares de saber e poder dentro da psicanálise criariam saberes que em coletivo e em prol do comum poderiam furar o sistema atual. Mas até lá, seguem alguns questionamentos; quem consegue o privilégio de tempo e estudo para promover essa transformação? Como articular os coletivos ao sistema público? Articular-se com o setor privado poderia ser uma ameaça ao propósito das clínicas? Como abrir estas portas para novas pessoas na psicanálise e no movimento social?

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Atenção: Este site não oferece atendimento imediato a pessoas em crise suicida.

Em caso de crise ligue para o CVV, telefone 188.

https://cvv.org.br/

Em caso de emergência, procure o hospital mais próximo. Havendo risco de morte, ligue imediatamente para o SAMU (192) ou Corpo de Bombeiro (193).

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